[an error occurred while processing this directive] As palavras em rede | Revista Língua Portuguesa
      
  



LAUAND, Jean . As palavras em rede. Língua Portuguesa, v. 37, p. 39-43, novembro 2008.

As palavras em rede
Mesmo a mais inofensiva busca na web mostra a riqueza da língua e sua capacidade expressiva

Jean Lauand

Uma das grandes dificuldades de aprendizagem de uma língua estrangeira (e também da materna), sobretudo no escrever e falar, reside no fato de que há sintagmas, associações de palavras (em alguns casos, autênticos clichês), formas concretas de expressão, mais ou menos fixas do ponto de vista da correção ou da estética, que multiplicam a necessidade de memorização, desnecessária se trabalhássemos só com a uniformidade (e pobreza...) do caso geral.

Assim, por exemplo, o geral "unidade" dá lugar a mil ocorrências distintas quando se desce ao concreto: falamos em "cabeças" de gado, "pés" de alface, "partidas" de futebol, "peças de teatro" etc. e não cabe "unidades" de gado, de alface, de futebol, "unidades de teatro" etc., embora, do ponto de vista do significado, "cabeças", "pés", "partidas" e "peças" signifiquem, precisamente, "unidades".

Naturalmente, cada língua tem suas formas de associação nessas composições e enquanto nós fazemos um cheque ou compomos uma canção, o inglês "escreve" (write) um cheque e "escreve" uma canção. Mesmo que seja para sempre (e até antes da lei do divórcio) na Espanha, se uma pessoa é casada, diz-se "está casada" (sem nenhuma alusão de provisoriedade) e o francês usa o faire até no sentido de "dizer". "Preste atenção" tem seus correspondentes em "fais attention", "pay attention", "estate atento"...

Leques
O fenômeno é mais extenso do que à primeira vista supomos e para, de algum modo, verificar isto felizmente dispomos de um sensor de uso de expressões: o Google (ou outra ferramenta de busca na internet). Quando lançamos uma seqüência de palavras no boxe de busca "a expressão" - apesar de todas as imprecisões e distorções - o Google, ao indicar em quantos sites da rede aquela seqüência de palavras aparece, já nos dá uma boa idéia da vigência e da atualidade de seu uso.

Por exemplo, procurando no Google a expressão "usar leque" encontramos exíguas 19 ocorrências (claro, as novas gerações nunca viram um leque), enquanto "ligar o ar-condicionado" tem 41.200; a tal da "unidades de gado" tem 12 ocorrências, enquanto "cabeças de gado" tem 139 mil. Estes acessos são dos últimos dias de julho e primeiros de agosto de 2008.

Procurando avaliar a extensão do fenômeno do desdobramento concreto, tomemos o unitário abstrato: "pouco", para quantidade ou intensidade (em algumas expressões, esses desdobramentos serão negativos, como, por exemplo: "ele não tem um pingo de vergonha na cara"). Para começar, consideremos o caso de uma dúvida, idéia ou lembrança pouco intensas. Falaremos de "sombra de dúvida" (222 mil ocorrências), "pálida idéia" (14.200) e "vaga lembrança" (26.200).

Certamente, todos entenderiam se eu dissesse "pálida lembrança", "pálida dúvida" ou "sombra de lembrança" (1.170 , 44 e 10, respectivamente), mas o uso recomenda as formas do parágrafo anterior; cabem também "vaga idéia" (50.900) e, no caso de "noção", "vaga noção" (8.420) e "leve noção" (4.230). Uma curiosidade: o recente "sem noção" quebra todos os recordes, beirando o 1 milhão.

Pouco
Se a inveja vem em "ponta" (ou pontinha); o ciúme dá-se em pitada; a ingenuidade, em doses; a vergonha na cara, em pingos etc. Temos: "leve impressão" (34 mil), "toque de classe" (44.400), "leve suspeita" (4.470), "ponta de inveja" (24.900), "pitada de ciúme" (1.010), "traço de tristeza" (2.750), "dose de ingenuidade" (2.660, geralmente antecedida de "grande"), "pingo de vergonha" (48.200), "resto de esperança" (9.990) e "pinta de palhaço" (3.060, ajudado pela antiga canção Palhaçada).

A tabela na página 40 dá idéia da maior ou menor popularidade dos esquivalentes da palavra "pouco" na internet. "Pouco" para a prosa é "um dedo"; para cachaça, "dois dedos"; para guloseimas temos um "teco". Já a pouca visibilidade dá-se em "palmo". E há "fio de voz"; "gostinho de infância"; "gole de álcool" (com índice alto de ocorrências no Google, ajudado pela recente "lei seca"), "pingo de gente", "bocadinho de sorte" (mais em Portugal), "pedaço de mau caminho"...

Quanto à pouca duração, encontramos: "assomo de coragem", "acesso de fúria", "rompante de raiva", "momento de indecisão". Poucos recursos são "escassos recursos", pouca diferença é "sutil diferença", e encontramos pouca densidade no "café ralo". Para pouca distância, há "beirando o desespero"; chegando "às raias da loucura" - mais freqüente do que "beirando a loucura" e esta menos usada do que "beirando a insanidade"...

Meio
Outro dado interessante diz respeito aos equivalentes do geral "pouco", como o brasileiríssimo "meio": aquele supera este em expressões como "um pouco chateado" contra "meio chateado" (ver página ao lado); mas "meio" ganha de "um pouco" em: "um pouco sem graça" x "meio sem graça"; "um pouco louco" x "meio louco"; "um pouco chato" x "meio chato" ; "um pouco desconfiado" x "meio desconfiado"; "um pouco puto" x "meio puto"; "um pouco besta" x "meio besta"; "um pouco veado" x  "meio veado".

No caso de "um pouco desanimado" x "meio desanimado" há ligeira, mas significativa, prevalência de "meio", que se amplia no "aumentativo": "um pouco desanimadão x "meio desanimadão"; talvez pelo fato de "pouco" bater de frente com o aumentativo... Daí que: "um pouco esquisitão" x "meio esquisitão"; "um pouco ressabiado x "meio ressabiado"; "um pouco assim, assim" x "meio assim, assim", em que "meio" é palavra de predileção.

E, em geral, a expressão "ficando meio" emprega-se muito mais vezes do que "ficando um pouco": 64 mil x 37 mil. Já a equivalente, menos usada, "ficando um tanto" ocorre 5.410 vezes. Temos "um tanto estranho" (69.200) x "meio estranho" (345 mil) x "um pouco estranho" (99.800) (há a opção "um tanto quanto", não desprezível em expressões como "um tanto quanto estranho" (21.200); "um tanto quanto esquisito" (2.640).

Dicionários
Dois outros sinônimos de "pouco" têm um comportamento muito curioso: "bocado" e "punhado". Diz o Aurélio:
- Bocado - Pequena quantidade de qualquer coisa. 
- Punhado - Pequena porção; número reduzido.
Já o Houaiss adverte para o ambíguo caráter de "punhado":
- Bocado - fração de uma coisa; pedaço, porção.
- Punhado - quantidade pequena (de algo)... ou quantidade grande (desse mesmo algo)!!!

O fato é que "bocado" e "punhado" podem servir tanto para indicar "pouco" como "muito": fato que não deve surpreender num país em que o diminutivo pode servir também de aumentativo, como quando se diz do pão de queijo que acaba de sair do forno "está quentinho"; ou da moça apaixonada em grau superlativo por um rapaz, que "está caidinha por ele" (ou "caidaça").

Para "punhado", recolho ainda no Houaiss, quantidade pequena: "um punhado de soldados lutou contra os insurretos". E para "bocado", no sentido de "grande quantidade", basta lembrar de O Pequeno Burguês, do sambista Martinho da Vila:

E quem quiser ser como eu,
Vai ter de penar um bocado

Por trás da rotina e dos clichês, essa imensa variedade de formas é, afinal, a riqueza da língua e de sua capacidade expressiva. Já Orwell advertia, em seu 1984, que a "novilíngua", principal instrumento a serviço da opressão, tinha como missão diminuir o âmbito do pensamento e reduzir ao mínimo as possibilidades de escolha das palavras. E, de fato, a cada ano o vocabulário diminuía, o que era considerado um avanço, pois quanto menos possibilidades de escolha, menor a tentação de produzir pensamento...

Nem sempre atinamos com as razões - se é que sempre as há - para o uso desta ou daquela palavra nas expressões; o fato é que usamos "margem" de lucro e de erro, e se a freqüência de uso de "faixa" de incerteza e de confiança é praticamente a mesma dos correspondentes "margem" de incerteza e de confiança, não se pode dizer: "não deixa faixa para dúvidas", porque o uso impõe: "não deixa margem a dúvidas". E embora se trate de margem/faixa, na tabela de classificação do campeonato brasileiro, a única expressão legitimada pelo uso é "zona de rebaixamento".

Se a avaliação do carro tem "itens", a da escola de samba tem "quesitos". Como faz o pobre do estrangeiro para adivinhar? Sem "sombra" de dúvida (a dúvida tem sombra!) ele acabará por "cair" no ridículo (e mais essa: no ridículo... se cai!) e está "coberto" de razão quem "levante" a suspeita de que ele ficará "mergulhado" na incerteza e "envolto" em dúvidas.

Faça você mesmo

- Escolha uma palavra ou expressão que, em sua opinião, tem muitos sentidos, variações ou termos equivalentes.
- Faça uma lista de expressões. 
- Use um mecanismo de busca na internet, como o Google ou o Yahoo!, e descubra a "popularidade" de cada expressão. 
- O que as diferenças encontradas podem significar?

Moda
Cabe lembrar que essas formas associativas podem mudar com o tempo, com a moda: já que estamos falando em "dúvida", cada vez mais cai no esquecimento a antiga expressão "dúvida atroz" (ainda com 9.040 ocorrências no Google), substituída, hoje, sobretudo por "dúvida cruel" (281 mil) e não se diz, digamos, "dúvida amarga" (34) ou "dúvida dolorida" (8), formas que podem vir a prevalecer no futuro.

Se as razões dessas escolhas nem sempre são claras, em alguns casos podemos identificá-las. Algumas procedem de frases famosas de políticos, futebolistas, personagens de telenovelas..., que criam (ou revitalizam) expressões como: "eu sou mais eu", "é o cara", "com tudo a que tem direito", "muita calma nessa hora" etc. Outras são frases de peças literárias, partes de antigos provérbios ou piadas. A maior parte dos usuários da famosíssima "cara-pálida" (150 mil) - "nós, quem, cara-pálida?", ignora a origem dessa expressão, usada por A para abortar a tentativa do interlocutor, B, de envolver A em um problema que é só de B.

Mais fácil é contar a piada: no início dos anos 60, a TV brasileira exibia o seriado do herói Lone Ranger, que, no Brasil, foi batizado de Zorro (não deve ser confundido com o autêntico Zorro, o da capa e espada), um ranger sempre acompanhado do fiel índio Tonto. Um dia Zorro e Tonto encontram-se encurralados por índios sioux de um lado; comanches, apaches e moicanos pelos outros lados. Quando acaba a munição, Zorro se lamenta: "Nós estamos perdidos, Tonto". Tonto faz sua melhor pose de índio, capricha no sotaque e responde: "Nós, quem, cara-pálida?". Também é uma piada a raiz de "amigo da onça" (45 mil).

Soneto
Outras fontes: provérbios, literatura, canções, publicidade... Alguém sumido aparece e logo surgem os indefectíveis "o bom filho à casa torna" (132 mil) e "longo e tenebroso inverno" (86.100); este, oriundo da ironia dos antigos ginásio e "normal", quando as bisavós do leitor decoravam o decimonônico soneto A Visita à Casa Paterna, de Luís Guimarães Jr.:

Como a ave que volta ao ninho antigo
Depois de longo e tenebroso inverno
Eu quis também rever o lar paterno
O meu primeiro e virginal abrigo.


E ao ser apresentada a pobre senhora de nome Amélia, fatalmente terá de ouvir de algum engraçadinho: "Ah, Amélia, você é que é a mulher de verdade?", da antiga canção de Ataulfo Alves e Mário Lago.

Futebol
Clichês à parte, a diversidade de possibilidades de combinações, de escolha (Orwell) de expressões reflete a riqueza da língua (e, portanto, do pensamento) e permite comunicar de modo mais abrangente a complexa realidade.

Pense-se, por exemplo, nas sutilíssimas formas de um narrador de futebol relatar o lance do pênalti. Entre os categóricos: "Fulano foi derrubado na área: é pênalti!" e "Fulano se jogou: não houve nada!", há toda uma gama que permite expressar dúvidas sem arriscar-se a ser processado pelo juiz ou por um dos times.

Por exemplo, "o juiz marcou pênalti", "deu pênalti" ou "viu pênalti" são diferentes: o primeiro caso parece mais neutro, não entrando no mérito; o segundo, parece indicar que o juiz, de boa vontade, acabou interpretando que aquele lance, que tinha aspecto de faltoso, de fato o era; no terceiro, o pênalti foi duvidoso ou inexistente, mas o juiz (e só ele) viu pênalti ou, quem sabe, a visibilidade privilegiada da posição do juiz permitiu-lhe ver o pênalti que eu não vi. Aí dependerá também do tom de voz e dos comentários contextualizantes.

Diferenças na linguagem, sutilezas naturais, imprecisas e misteriosas. Se, pelo contrário, chegarmos à precisão artificial e à estreiteza da "novilíngua", ser-nos-á, como em 1984, literalmente impensável um pensamento dissidente ou divergente em relação ao absoluto do Poder, qualquer que ele seja "pelo menos - conclui Orwell - na medida em que o pensamento depende das palavras"...

É pouco

A popularidade dos diversificados equivalentes do sentido dado à palavra "pouco" encontrados no Google

Aplicação Expressão Ocorrência
Prosa Um dedo de... 130 mil
Cachaça Dois dedos de... 768 mil
Guloseimas Um teco de... 11.200
Visibilidade Um palmo (adiante do nariz) 2.020
Voz Um fio de... 25 mil
Infância Gostinho de... 3.900
Álcool Gole de... 29.900
Gente Pingo de... 108 mil
Sorte Bocadinho de... 24.900
Mulher atraente Pedaço de mau caminho 18.900
Duração (de sensação) Assomo de coragem 584
  Acesso de fúria 19.600
  Rompante de raiva 72
  Momento de indecisão 3.270
Recursos Escassos recursos 40.300
Diferença Sutil diferença 69.700
Densidade (do café) Café ralo 2.470
Distância Beirando (o desespero) 1.290
  Às raias da loucura 4.690
  Beirando a loucura 850
Beirando a insanidade1.030

Entre o "POUCO" e o "MEIO" no Google

Um pouco chateado

43.100

Meio chateado

20.600  

Um pouco sem graça

26.600  

Meio sem graça

250 mil

Um pouco louco

35.200  

Meio louco

59.900

Um pouco chato

39.300  

Meio chato

    121 mil

Um pouco desconfiado

6.900  

Meio desconfiado

30.900

Um pouco puto

576      

Meio puto

  14.200

Um pouco besta

1.140  

Meio besta

        25.700

Um pouco veado

29  

Meio veado

  14.600

Um pouco desanimado

  21.400

Meio desanimado

  29.300

Um pouco desanimadão

  0

Um pouco esquisitão

        6  

Meio esquisitão

  947

Um pouco ressabiado

    890

Meio ressabiado

5.730          

Um pouco assim,assim

            34  

Meio assim,assim

  1.980  
- A oração invisível
- O esperanto ainda respira
- Teatro das arábias
- O lugar de cada palavra

 
 
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