Filosofia
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Junho/2015


Filosofia

Brasil confunde "devo" e "posso"

Prática do pensamento confundente faz verbos mudarem sentidos no país

Jean Lauand


Em 1999, tive o privilégio de entrevistar, em Madri, o pensador Julián Marías e conversamos sobre um fecundo conceito de Ortega y Gasset: “pensamento confundente”. Trata-se do fato de as línguas pensarem conjuntamente em uma palavra o que outras distinguem em diversas. É, portanto, conceito relativo e sem valores a priori: em termos abstratos, não é melhor ser confundente ou “distinguente” e não há carga pejorativa na denominação “confundente”.

Em geral, há clara tendência ao confundente nas línguas orientais, mas ocorre confusão/distinção em toda língua. Quem faz legendas em português para um filme inglês tem de decidir se traduz you por “você” ou “senhor”, pois o inglês usa you tanto para a conversa de amiguinhos na creche quanto para dirigir-se ao severo avô. O mesmo ocorre na situação inversa: como legendar, em inglês, o confundente “grande” do português? Ao usá-lo pode não se estar pensando no físico big, mas em great, em grandiosas conquistas: “Grande Uruguai: desclassificou a Argentina!” ou “Grande Uruguai: legalizou a maconha!”, etc.

Sobre o positivo do confundente, assim se expressava Marías:

“Trata-se de uma dupla dimensão do pensamento. Há uma função, diríamos, normal do pensamento que é distinguir e determinar as diferentes formas de realidade. Por outro lado, se esta fosse a única função do pensamento, não haveria como lidar intelectualmente com realidades complexas em suas conexões, nas quais interessa ver o que há de comum e, portanto, o tipo de relações que há entre realidades que, de resto, são diferentes. É o que Ortega denominava ‘pensamento confundente’. Gosto do exemplo da palavra ‘bicho’, muito vaga, que se refere a milhões de animais, mas nos comportamos ante um ‘bicho’ de uma maneira, de certo modo, homogênea: em muitas ocasiões as diferenças não contam e não nos importa a espécie (haverá centenas de milhares de coleópteros, mas, para muitos efeitos, não interessa). O ‘pensamento confundente’ é muito importante e é complemento ao pensamento que distingue.”


O verbo “dever”

Se, como regra geral, prevalece o fenômeno nas línguas orientais, o português tem acentuados confundentes. Sobretudo o do Brasil, com nossa propensão ao genérico, à indeterminação, ao neutro. Certa vez, dirigindo-me a um colega, vizinho de prédio no campus, a quem  costumava dar carona, perguntei:

– E aí, vai para a USP amanhã?

– Devo ir.

Assim, sem mais, o interlocutor não tem como saber o que significa esse “devo”, entre nós, muito confundente. Como traduzi-lo para o inglês (should, have to, supposed to, must, ought...)? “Devo” pode ser a mais absoluta e imperativa decisão de ir (“devo ir, senão a USP desmorona”) à mais descomprometida e frágil intenção (“falei ‘devo ir’, mas aí apareceu um desenho animado legal na TV e eu não fui”).

O brasileiro, que não sabe dizer “não”, vale-se do “dever” neste sentido. Se alguém convida você à formatura da neta dele no ensino fundamental, a resposta “Devo ir” é, claramente, a forma polida que vale por um sonoro “não”. Claro que é um passo a mais na atitude neutra, tão frequente entre nós, que se instala em uma indeterminação confundente, dispensando-se do peso de decidir... E não deixa de ser inquietante que tenhamos toda essa gama de significados em torno de um verbo tão fundamental como “dever”.

O mesmo ocorre com “poder”. O dicionário Aurélio dá 15 sentidos a ele; o Houaiss, 12. Em espanhol haveria que se acrescentar outro: “ser más fuerte que otro, ser capaz de vencerle. ‘En la discusión me puede’” (Dicc. de la Real Academia). Quando se contempla a meteórica ascensão da nova força política da Espanha, o ¡Podemos!, fundado em 2014, não haverá aí – além da alusão ao “Yes, we can!” – uma outra, implícita, evocação desse poder, como ser capaz de se impor ao oponente? Esse sentido já não é mais comum entre nós, mas o hino comemorativo da Copa de 1958 dizia: “A taça do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa”, hoje tão em desuso quanto outro verso que chama a seleção de “esquadrão” de ouro... Foi nessa época que Dorval (do lendário ataque: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe), após virada do Santos, quando questionado sobre como foi possível a façanha, declarou:

– Futebol não é para quem quer; é para quem pode!

E hoje temos outra forma nova, ainda não dicionarizada: “tá podendo”, para indicar diversas formas de poder... E “Pode?” é indicação de algo absurdo ou imoral: “Uma hora e meia de fila de espera para entrar naquela droga de restaurante... Pode?”.

Nosso “poder”, “posso fazer”, em português concentrado em uma única forma, é em inglês – como faz notar o filósofo Vilém Flusser, diversificado em: I may do / I can do / I am able to do / I am allowed to do.

– Você faz uma cesta de três pontos para eu ver ?

– Não posso (“agora estou ocupado com alongamentos”)/ (“não vê que sou portador de deficiência e incapaz, sequer, de segurar a bola?”)/ (“estou destreinado”)/ (“o técnico nos proibiu de arriscar esse tipo de lance”).

Flusser – em aguda intuição – vê no “poder” em português (em contraste com o inglês e com o alemão), um decisivo alcance metafísico:

“Poder e dever são conceitos ligados entre si, e tenho certeza de que um estudo fenomenológico das duas palavras esclarecerá fundamentalmente o sistema ontológico que suporta a língua portuguesa”. (Língua e realidade. 3a ed. São Paulo: Annablume, 2007:144.)”



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