Filosofia
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Janeiro/2015


Filosofia

As "boas" maneiras de ofender

Muitas expressões formulaicas disfarçam a agressividade de suas palavras

Por Jean Lauand

 

Nossas fórmulas de relacionamento, como muitas expressões da linguagem em geral, tendem a um embotamento: usamos uma forma consagrada, sem maiores reflexões sobre seu sentido originário. E pode acontecer que esse sentido traga em si algo ofensivo, contrário aos bons modos que seriam de esperar.


Quando dizemos, por exemplo, "vale a pena" no sentido de que algo é simplesmente muito bom, estamos cometendo um equívoco. Pois o que se afirma é que há uma pena, que o bem obtido até pode compensar, mas tem um custo penoso.


Nesse sentido, Tomás de Aquino, no século XIII, distinguia o bonum arduum do bonum simpliciter. Ao contrário do puramente deleitável, o bem árduo pressupõe esforço e pena para sua obtenção: "Pois é, trabalhei direto todos os fins de semana, mas valeu a pena porque com o acréscimo dessas horas extras pude dar a entrada para meu carro novo".


Quando a Globo intitula sua faixa de reprises Vale a pena ver de novo, a rigor, o que se diz é que essas novelas têm seu lado aborrecido, mas, afinal, é interessante revê-las. Um título publicitário mais adequado, nesse sentido, seria, digamos, "Como é bom recordar!".


Assim, quando a dona da casa pergunta ao convidado que se despede se ele gostou da festa e ele responde: "Sim, valeu a pena", na verdade está implicitamente se queixando de algo.


No Brasil, as formas de convivência muitas vezes se revestem de eufemismos e cuidados para não ferir susceptibilidades e evitar melindres. Impera na convivência a suavidade e, assim, expressões de enfática afirmação como: "Com certeza!", "Ôôôôpaa!" (que é um "sim" superlativo), "pode deixar" "tamos aí", etc. podem significar, pura e simplesmente, um rotundo "não!".


Um convite descabido: "Você vai à cerimônia de formatura da minha sobrinha neta, daqui a três meses?", obterá como resposta um "Com certeza!". Naturalmente, o convidado não irá nem telefonar para desculpar-se pela ausência; o que importa é, no momento do convite, poupar o interlocutor do desgosto de ouvir um não.


Outro modo de aparar arestas na convivência é o emprego irrestrito de diminutivos. Como escreve o clássico Sérgio Buarque de Holanda:


"Nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação 'inho', aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los ao coração".


Eufemismos

Para ficarmos com alguns exemplos, fomos educados para atenuar tudo com diminutivos; assim, alguns dos enormes e sangrentos espetos do rodízio de carnes são diminutivos de carteirinha, como "maminha" e "fraldinha"; e muitos outros viram diminutivo ao serem oferecidos, "coraçãozinho" e "franguinho", acompanhados talvez de uma "caipirinha", que sempre dá uma animadinha para manter aquele papinho etc. Até nossos criminosos e contraventores são afetivamente designados por Carlinhos Cachoeira, Fernandinho Beira Mar, Marcinho VP etc.


Outro fator desconcertante são os eufemismos, que tendem a se absolutizar e excluir o verdadeiro nome das coisas: dificilmente designaremos um homem gordo por gordo, e menos ainda uma mulher! Ela é "fortinha". "Moço", e especialmente o feminino, "moça" ou "menina" pode designar uma pessoa qualquer, não necessariamente jovem: mesmo após 50 anos de carreira, até o recente falecimento de Cybele aos 74 anos, sempre se falou em "as meninas" do Quarteto em Cy.


Já do lado positivo, a mesma tendência se realiza, por vezes, em expressar excessos de agradecimentos ou desculpas.


Falsa polidez

Mas esses exageros de gentileza por vezes são alvo de respostas grosseiramente "polidas". O dono da casa passa o dia que antecede a vinda da faxineira limpando a sujeira mais grossa e esmerando-se para deixar as coisas em ordem para facilitar o trabalho da profissional. Quando, no dia seguinte, ela chega, ouve:


- Oi, Olímpia, bom dia. Desculpe a bagunça e a sujeira.


Ante esse exagero de respeito e gentileza, a resposta cabível seria:


"Imagina, que nada! Está tudo tão em ordem", mas a Olímpia aproveita e desfere um coice: "Não esquenta a cabeça!". Com o que se diz que, de fato, vocês são sujos e desleixados, mas não têm com que se preocupar porque eu não vou levar isso em conta e, afinal, é para limpar este chiqueiro que eu estou aqui...


O troco vem na hora da despedida:


- Dr. Mendonça, acabei e estou indo. Eu abri uma garrafa de suco de maçã e tomei um copo com umas fatias de presunto.


- Não esquenta a cabeça, não, Olímpia!" (em vez do cordial: "Que que é isso, à vontade, a casa é sua").


Nessa mesma linha de subordinado que se arvora em superior, está o caso do síndico que deu uma festa no salão do prédio e contratou um bufê para servir. Um dos garçons - desses que recebem treinamento padronizado e não sabem distinguir entre as diferentes situações - interrompe animada conversa do anfitrião com um insistente oferecimento de empadinhas. O síndico diz "- Não, obrigado!". E o garçom: "- Fique à vontade!".


Vê se aparece

Resumindo, grosso modo e pressupondo as mil ressalvas das generalizações, a visão do mundo ocidental tende a ser centrada no eu do sujeito. Assim o expressa a monja Coen em uma entrevista:


"Eu sinto que sair do eu autocentrado e se dedicar ao Eu maior é a própria felicidade - e isso tanto no Ocidente quanto no Oriente. Talvez os métodos educacionais sejam diversos: o Ocidente sempre foi mais centrado no eu individual do que o Oriente, que costuma considerar a coletividade em primeiro lugar".


Claro que isso não quer dizer que os ocidentais sejam egoístas e os orientais solidários, como aliás adverte a própria monja nessa mesma entrevista.


Seja como for, algo desse centramento no eu revela-se em uma de nossas fórmulas de despedida mais usuais. A visita está indo embora e o dono da casa diz "Vê se aparece!". Claro que o sentido é o de manifestar apreço e agrado com a presença do visitante, mas fica implícito (e inconsciente) que nós somos pessoas importantes, interessantes, bonitas, legais... e autorizamos você a vir ver-nos, pois, nós, além do mais, somos também generosos.


A diferença fica clara quando contrastamos com a forma árabe para situações semelhantes: o oriental despede-se da visita dizendo: Ismah lana nashufak! - Permita que nós o vejamos (você é a pessoa importante, etc...).


Semita

É necessário ter em conta a exuberância nas fórmulas de hospitalidade para uma melhor compreensão do mundo semita. O Alcorão prescreve, por exemplo (IV, 86), retribuir uma saudação com outra mais intensa ou, pelo menos, não inferior. Naturalmente, a reação em cadeia deflagrada por um simples "Bom dia" pode durar uma eternidade:


- Bom dia.

- Tenha você um dia de luz...


- E você um dia de luz e de mel... (mel e jasmim; doce música; que a sombra de Allah te acompanhe; etc.).


Nesse sentido, Cristo, que tão bem sabe valorizar a hospitalidade e as formas humanas de acolhimento (cf. Lc 7,44 e ss.), tem de recomendar aos discípulos enviados em missão:


"A ninguém saudeis pelo caminho" (Lc 10,4).


Não é ser antissocial, é simplesmente um problema de aproveitamento do tempo em uma missão urgente!


Qualé a dele?

Até para falar mal de alguém - de um colega de trabalho ou conhecido comum ausente no momento - a agressão não pode ser direta. A melhor forma de instilar o veneno é pelo malicioso neutro, lançado por um dos da rodinha do happy hour:


- O Fulano, qual é a dele, hein?


Tecnicamente, não há aí nenhuma maldade: não houve referências a sua orientação sexual nem a seu comportamento na empresa, ninguém afirmou que ele é um puxa-saco nojento do chefe etc. Só uma "inocente" indagação genérica.


Ainda no neutro, outros vão ajuntando:


- É, o Fulano...


- Eu, eu não sei não...


- O Fulano...; eu, hein?


- Olha, sem nenhum preconceito, vocês sabem que eu tenho o maior respeito pelo modo de ser de cada um...


Até que alguém resolve começar a descer ao plano concreto, mas sob a proteção da inversão semântica de palavras originalmente elogiosas.


- Eu admiro a coragem e a criatividade que ele tem: puxar o pic pic no aniversário do chefe foi uma inovação marcante na firma...


- Essa foi demais, ele é ótimo. Para mim, nem a Carmen Miranda faria melhor.


- Pera aí, gente, aqueles trejeitos não querem dizer nada... Afinal, ele tinha bebido um pouquinho além da conta...


Etc.


E, certamente, o golpe fatal, deverá ser precedido dos clássicos:


- Não tenho nada contra Fulano, adoro ele, mas...


Facilone

Facilone em italiano - palavra que faz muita falta no português - designa aquele tipo de folgado que acha que as coisas são muito mais simples do que na realidade são. Assim, o facilone pode se atrever a pedir "pequenos" favores.


Um facilone bíblico (II Re 5) é aquele rei da Síria, que envia seu general Naamã, com muitos presentes, ao rei de Israel (terra de profetas), dizendo-lhe em carta: "Eu te envio Naamã, meu servo, para que o cures da sua lepra" (!!). Naturalmente, o rei de Israel interpreta isso como um pretexto do sírio para provocar uma guerra. O que não ocorre porque o profeta Eliseu cura Naamã.


Um exemplo caricatural. Você está dando uma carona para um facilone e, ao passar em frente à sua agência bancária, ele diz:


- Dá para dar uma paradinha? Eu vou abrir uma conta de poupança com meu gerente e volto: são só cinco minutinhos.


Quando, quinze minutos depois, você liga para o celular dele, ele já atende agressivo, acusando o interlocutor de impaciência e atribuindo-a a seu estresse:


- Calma! Dá licença? Já estou saindo.


E quando você resolve pagar o estacionamento e verificar pessoalmente o caso dentro da agência, o facilone sorri e diz:


- É só mais um minutinho: eu sou o próximo a ser atendido....

Como se vê, a linguagem brasileira se presta a múltiplos e sutis usos e formas aparentemente polidas podem ser usadas para golpear.



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