Filosofia
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Junho/2014


Filosofia

A linguagem do agir

A expressão verbal revela que nem sempre imprimimos nossa límpida vontade a nossos atos

Por Jean Lauand


Em memorável conferência sobre Aristóteles, o filósofo espanhol Julián Marías afirmou:

“Poucos leem filosofia, mas todos vivemos e todos usamos uma língua que é aristotélica em uma altíssima proporção. Gente que não sabe nem quem era Aristóteles, que não conhece seu nome (e certamente não sabe nem uma palavra de grego), emprega justamente o vocabulário e o sistema conceitual de Aristóteles o tempo todo. Nesse sentido, a fecundidade aristotélica é extraordinária”.

Entre tantos outros conceitos, por exemplo, quando no Google encontramos mais de 12 milhões para a busca conjunta das palavras “teoria” e “prática” ou quando as peças de publicidade da Pirelli ou da Unip falam em potência (“Potência não é nada sem controle”; “Transforme seu potencial em sucesso profissional”) é a Aristóteles que se devem pagar os royalties.

Chaves
Do mesmo modo, quando se trata de esquadrinhar a conduta humana, encontramos uma fórmula de precisão, enraizada em textos jurídicos em língua espanhola: a que indaga pela causa, razão, motivo ou circunstância de tal ato. Encontramo-la em sentenças do Tribunal Supremo de Justicia (http://miranda.tsj.gov.ve/decisiones/2011/mayo/102-23-19.754-.html) ou em um programa municipal de educação da República Bolivariana de Venezuela, que promete, “entre outros benefícios”, saber a causa, razão, motivo ou circunstância pela qual uma criança não está integrada ao sistema educacional (http://www.cne.gob.ve/divulgacion_municipal_2013/programas/20/291.956.pdf). 

O professor Girafales, do humorístico Chaves (SBT), nada mais fez do que recolher esse velho bordão, que, hoje no Brasil, virou jocosamente equivalente ao enfático perguntar “Por que raios...?” ou “Por que diabos...?”: “Por que causa, razão, motivo ou circunstância esse sanduíche ainda não saiu!??”. Bordão adequado ao estereótipo professoral e erudito do mestre, como também quando ele emprega todas as conjunções ao mesmo tempo: “Mas, porém, contudo, todavia, entretanto...”

É que “causa” ainda é muito amplo. Aristóteles distingue as famosas quatro causas: material, formal, eficiente e final. No batido exemplo didático, a causa de tal estátua é sua forma – a de Fulano, o homenageado (causa formal); ou o bronze (causa material); Policleto, o escultor (causa eficiente); e a finalidade de homenagear o herói (causa final).

Claro que em um mundo que é visto como perpassado por logos, os porquês das causas podem ser vistos como razão: Por que (finalidade) esta estátua? Para que nunca esqueçamos dos pracinhas que corajosamente lutaram na guerra. No agir humano, a causa final – e finalidade é uma razão – é segundo o axioma escolástico “a primeira na intenção e a última na execução”. E a razão explicita a conexão causa-efeito mesmo em processos físicos alheios à vontade do homem: a razão (causa) do baixo nível de água nas represas é o baixo índice pluviométrico deste verão.

Já motivo parece indicar a razão enquanto móvel da ação e se torna totalmente psicológico quando usamos a palavra “motivação”. Quando, diante de uma ação, perguntamos “por quê?”, estamos perguntando pela razão (reason, raison...): “Por que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral, dizemos: “Que absurdo!!”. Subtrai-se ao âmbito da razão, quem – não apontando os porquês – insiste em fórmulas como: “Não estou a fim...” ou, como na recente campanha publicitária da cerveja Schin: Porque sim! (o que equivale a dizer que não há razões para optar por essa marca!).

Consciência
Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A função da virtude, classicamente um habitus, é precisamente a de permitir realizar o ato com facilidade, espontaneamente, com um certo automatismo que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria a espontaneidade adquirida – após árduos esforços – dos hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua estrangeira ou andar de bicicleta?).

Já a circunstância é “condição de tempo, lugar ou modo que cerca ou acompanha um fato ou uma situação” (Houaiss). Uma coisa é o ato; outra, a circunstância. No exemplo de Tomás de Aquino:

“Não é circunstância se o forte age corajosamente por causa do bem que é a fortaleza; mas, se age corajosamente para a libertação do Estado, do povo cristão ou de modo semelhante. E o mesmo se dá com o que respeita ao que se faz; assim, se alguém, derramando água, lava outrem, isso não é circunstância da ablução; mas, sim, se, lavando, resfria ou aquece, sana ou faz mal”.

Claro que as circunstâncias podem ser decisivas na valoração de um ato: por exemplo, se se trata de um furto de milhões ou de centavos; se se toma de um rico desonesto ou de um pobre trabalhador; etc.

Dada a importância das circunstâncias é necessária a circunspecção, que mais do que a atitude reservada ou sisuda é, também etimologicamente, ver o que circunda. Como na proverbial visão periférica de Pelé – que abrangia 180 graus, enquanto a média dos futebolistas não passa de 165 – que possibilitou o genial passe para Carlos Alberto marcar o 4º gol da final da Copa de 1970.
Na famosa sentença de Ortega, a circunstância é promovida ao nível do eu:

“Eu sou eu e minha circunstância...”.

E é que nem sempre temos domínio sobre nossas ações... Nem sempre imprimimos nossa límpida vontade a nossos atos. Por exemplo, ocorre muitas vezes que a decisão tem de ser tomada em fração de segundo, sem deliberação: em uma palestra da Soccerex 2012, comentava-se que um jogador de futebol toma cerca de 1.350 decisões por jogo e o treinador quer prepará-lo, fazendo-o driblar cones (!?).

Também muito do que fazemos transcende o estreito binômio “voz ativa x voz passiva”, que a gramática quer impor a nosso modo de pensar. Estamos tão acostumados a considerar que o verbo só admite essas duas formas de voz que nem podemos imaginar uma terceira. Ativa e passiva – assim pensamos à primeira vista – esgotam todas as possibilidades (o que poderia haver além de “Eu bebi a água” e “A água foi bebida por mim”?). E como o pensamento está em dependência de interação dialética com a linguagem, o fato de nossa língua (como, em geral, as línguas modernas) não admitir uma terceira opção – a voz média, que não é ativa nem passiva – constitui um grave estreitamento em nossas possibilidades de percepção da realidade.

A voz média é um rico recurso – encontrado por exemplo no grego –, que permite expressar (e perceber e pensar) situações de realidade que não se enquadram bem como puramente ativas nem como puramente passivas. Isto é, há ações que são protagonizadas por mim, mas que, na realidade, não o são em grau predominante: há tal influência do exterior e de outros fatores que não posso propriamente dizer que são plenamente minhas.

Circunstância
O eu estende-se à circunstância... O latim se vale de verbos chamados depoentes precisamente para essas ações minhas mas que não são predominantemente minhas; eu as protagonizo, mas não sou senhor delas, estou condicionado fortemente por fatores que transcendem o eu e sua vontade de ação. É o caso, por exemplo, do verbo nascor, nascer (nascer-nascido).

O verbo “nascer”, a rigor, não é ativo nem passivo: eu nasço ou sou nascido? Sim, certamente sou eu que nasço, mas estou longe de exercer de modo totalmente ativo e independente esta ação (“Com licença, eu vou nascer...”); e por isto o inglês usa nascer na passiva: I was born... O mesmo acontece, por exemplo com o morrer: a ação é minha, mas não o é...

Voz média
Com a perda da voz média, o português perdeu não apenas um recurso de linguagem, mas sobretudo um poderoso recurso de pensamento, de captação-expressão de imensas regiões da realidade. De fato, é uma violência para com a realidade que empreguemos, por exemplo, o verbo “surtar” como ativo: “O Giba é assim, ele surta a toda hora”. Como se o pobre Gilberto tivesse total controle sobre o que o faz surtar...

As canções de Paulinho da Viola trabalham muito com a voz média. O samba Timoneiro – dos versos “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...” – é um maravilhoso exemplo dessas ações que o latim expressa por verbos depoentes. Não sou plenamente dono do meu navegar; quem me navega é o mar. “E o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar...”.

Esse ser levado pelo mar da circunstância permite outro bordão, desta vez do próprio Chaves: “Foi sem querer, querendo...”, unido a seu outro cacoete: “Me escapuliu!”.



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