[an error occurred while processing this directive] A metafísica da "liquidação" | Revista Língua Portuguesa
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A metafísica da "liquidação"
Para fisgar o consumidor, comércio amplia o sentido da palavra "liquidação", com fórmulas estudadas já na filosofia medieval

Jean Lauand

Não somente os preços das mercadorias, mas também o significado das palavras pode sofrer uma "inflação": ter seu significado indevidamente estendido, com as consequentes distorções semânticas.

Pense-se, por exemplo, no uso comercial de palavras como: "desconto", "oferta", "promoção" ou "liquidação". Esta, em condições normais, significaria: "venda de mercadorias a preços abaixo do normal para renovação dos estoques ou extinção do negócio" (Aurélio) ou "venda de mercadorias, a preços reduzidos, por ocasião da cessação de um comércio ou para dar saída rápida ao estoque, para facilidade dos balanços etc." (Houaiss).

Porém, no uso inflacionado, em muitos casos, "liquidação" estende-se de "venda especial" para simplesmente "venda". Assim, os anúncios da TV apregoam que tal loja está em liquidação mas, se repararmos bem, tudo somado, as lojas parecem estar em liquidação o tempo todo: há poucos dias tivemos a "liquidação de carnaval" (como se as roupas ou eletrodomésticos, cansados de pular o carnaval e desgastados pelos desfiles, tivessem seus preços rebaixados em um "carnaval de ofertas"); depois teremos a liquidação de Páscoa; a do Dia das Mães; a do Dia dos Namorados etc.

Ou, mesmo sem pretexto de datas, há um estado permanente de liquidação (pelo menos em nível de anúncio e publicidade); o que, por outro lado, acaba levando a palavra a descrédito. Daí que já não baste anunciar uma mera liquidação, mas é necessário qualificá-la, modificá-la, intensificá-la, superlativizá-la, para compensar o desgaste inflacionário semântico.

O intensivo pode se dar de diversos modos; analisaremos, aqui, algumas formas especiais: as que seguem os "transcendentais do ente", na filosofia clássica de Tomás de Aquino (1225-1274).

Intensidade
"Ente", particípio presente do verbo "ser", é aquilo que é, que "exerce" o ser. Assim como o presidente exerce o ato de presidir; o gerente, o de gerir; o ouvinte, o de ouvir; o ente exerce o ato de ser. Assim, eu sou um ente, aquela árvore, meu cachorro Lulu, esta pedra, também o são.

Os seis transcendentais do ente são, por assim dizer, seis sinônimos de ente. Bem entendido: "sinônimo" não significa identidade absoluta, mas sim que cada um desses "sinônimos" aponta para um determinado aspecto diferente da mesma e única realidade. Como quando falamos em "casa", "lar", domicílio" e "residência". Em si, a realidade a que se referem essas palavras é a mesma e única; mas ninguém diz "domicílio, doce domicílio", nem a Prefeitura cobra IPTU sobre o meu lar etc. (ainda que haja casos em que é legítima a substituição de uma dessas palavras, ou indiferente o uso de uma ou outra: afinal, são sinônimas!).

Como dizíamos, apontam-se classicamente seis transcendentais, seis "sinônimos" do ente: verum, bonum, pulchrum, res, aliquid, anum. Respectivamente: "verdadeiro", "bom", "belo", "coisa", "que" e "um".

O que se afirma com os transcendentais é que tudo que é, é bom; tudo que é, é verdadeiro; é uno; é um quê (ali-quid algo) etc. A identidade (na coisa) entre ente, verdadeiro, bom etc. é uma das afirmações mais fundamentais da filosofia de Tomás de Aquino, por exemplo: o ente, enquanto diz respeito à inteligência, diz-se verdadeiro; à vontade, bom etc. Afirmar a relação do real com uma inteligência e uma vontade é, no caso, primariamente afirmar a dependência do ente para com Deus, cujo ato criador inclui pensar e querer a criatura com seu ser e essência. Aliás, criar deve ser entendido precisamente como um ato da Inteligência (que concebe, projeta) e do Querer divinos que conferem o ser. Assim, verdadeiro (ou bom) é algo próprio do ente, no sentido profundo de que o ente supõe uma relação com a inteligência que o cria e, então, também com a inteligência humana que a ele se abre.

Recíproco
Não pretendemos aqui explorar as ricas consequências filosóficas e relações teológicas que se encerram na doutrina dos transcendentais, mas somente indicar que, por mais estranho que à primeira vista possa parecer, é-nos, no entanto, altamente familiar esse trânsito e reciprocidade: ser-verdade-bem. Como sempre, voltemo-nos para a linguagem comum. Nela encontraremos, em muitas línguas, intuída e legitimada alguma equivalência entre ser, verdade, bem etc. É este exercício que faremos agora: mostrar como a linguagem autoriza o trânsito, a permutação dos transcendentais.

Quando algo é, mas é realmente ("Forty years: she is not really old"), dizemos que é de verdade, ou que é bom, ou belo, empregados no sentido de plenitude: "Não senhor, isto não é descanso; você precisa descansar de verdade", ou, o que é o mesmo, "um bom descanso" ou "um belo descanso". Também em outras línguas: o italiano, por exemplo, diz: "Una buona dose di vino", "Un bel pò di strada" etc.; o inglês: "It is a good distance" etc., sempre indicando plenitude, ser de verdade. Com o transcendental da beleza, dizemos coloquialmente: "Tal time se afundou bonito".

E se algo não vale a pena, "não adianta", o inglês diz "no good". Fala-se nos "bens" de uma pessoa: "Fulano, com o incêndio, perdeu todos os seus bens". E "bem" na expressão "se bem que" (ob-wohl, em alemão; ben che, em italiano; bien que, em francês) equivale à ressalva: "é verdade que" ou simplesmente, "é que". E o mesmo ocorre quando dizemos: "Ah! Eu bem que te avisei. Bem feito!" (Je vous l´avais bien dit!) ou "Você bem que podia me aparecer" (Vinícius de Moraes), ou ainda, "Eu bem que mostrei sorrindo" (Chico Buarque). Jawohl (literalmente: sim-bem) é a forma enfática afirmativa do alemão, que também dispõe do "bem" enfático Wo - zum Teufel - kann er wohl stecken? [Onde diabos pode ele (bem) estar metido?], bem como em outras línguas (Le ultime notizie lasciano ben sperare...).

E "também" significa tão-bem, ou seja, "igualmente é"; em alemão há, por exemplo, ebensogut e, em inglês, "as well": "He is rich, my father is rich as well". O espanhol tem a expressão "mas bien". Ante um vinho falso, um vinho que não é bem vinho, exclama-se: "Esto es mas bien água". E nós dizemos: "Nem bem chegou e já tornou a sair".

E quando algo é (é mesmo, para valer) diz-se em francês "pour de bon" (próximo ao inglês "for good", definitivo) ou "pour de vrai"; e dizemos que um bife está bem passado, "well done". Para não falar do "tout bonnement": "Elle est tout bonnement insuportable!".

Distinguimos moeda falsa de dinheiro bom; dizemos que o cheque é bom para depois de amanhã ("um assegno buono per dopo domani"; "good for 30 days" etc.); e temos "bônus" desta ou daquela companhia etc. Já a torcida daquele time do interior paulista, indignada ante o desempenho evidentemente displicente de seu goleiro, gritava revoltada: "O golero é farso" (em português há - como no alemão, inglês etc. - o "falso alarme"). Dizemos também "de mentirinha" para indicar que algo não é, ou "não é de nada".

Coisas
Para designar um ente ou uma ação qualquer, o italiano vale-se do transcendental "coisa" em lugar do nosso "que": "Cosa vuoi?", "Cosa fai?" ou, com a especial sensibilidade que italianos e alemães têm para o transcendental "belo": "Cosa fai di bello?" Já o alemão, para certos casos em que nós empregamos "bem", diz schön (belo): "also schön" (pois bem), "schön und gut" (muito bem) etc. Já "coisa", no nosso falar popular, pode indicar algo que está muito bom: "Hmm! Tá uma coisa" (combinando os transcendentais "um" e "coisa"). E quando algo não é, mas não é mesmo, dizemos "coisíssima nenhuma".

O transcendental unum é preferentemente restrito ao humano, no sentido universal de "alguém": uno (espanhol), einer (alemão), one (inglês), principalmente nos compostos someone, no one etc. (ainda que one possa referir-se a qualquer ente: "the next one, please", pode dizer também o operário que acaba de montar uma peça e pede a próxima). "Um", embora menos frequente que em outras línguas, pode também designar "alguém": "Ele é um que sabe o que quer". E o povo diz: "O Souza? É aquele um que tem um carro preto".

Foquemos agora um caso especial no qual é particularmente visível a equivalência dos transcendentais: seu uso intensivo, significando: "muito". Podemos usar "bom", "belo", "verdadeiro", "coisa", "que" e "um" nesse sentido, para indicar que algo é com intensidade.

Isto já se nota na própria palavra inglesa very, que obviamente procede do latim (verus, vere). Também o nosso "deveras" pode ser usado no sentido de "muito". Na Bahia, pede-se café com bem açúcar. "Muito obrigado", em francês, é não só "merci beaucoup", mas também "merci bien" (em alemão "danke schön" - obrigado belo). Note-se ainda que "how much" é literalmente em francês "com'-bien".

Liquidação
"Uma beleza de traiçoeiro", diz Riobaldo Tatarana para indicar o superlativo; "está bem mal"; "deveras interessante" e o já apontado "está uma coisa" são outros tantos usos intensivos dos transcendentais.

Um e que também podem passar por muito. "Que saudades que eu tenho...", "Que lindo!" e também no uso da gíria: "O que tinha de gente lá...", "O que o juiz roubou pros hóme...". "Está um calor, hein?" "Está uma chuva, um frio (What a cold!)". Bom disso, bom daquilo (bom de bola, bom de bico) também indicam intensidade.
A publicidade com palavras desgastadas como "liquidação" ou "desconto" vai procurar reforço em formas intensivas e nos transcendentais: liquidação de verdade, verdadeira oferta, um belo desconto, um bom desconto, liquidação para valer, que descontão!, isso é que é liquidação, "a" liquidação (durante anos o slogan das lojas Mappin, apontando para o unum, a única verdadeira; como o "Das Auto", dos atuais anúncios da Volkswagen, que apontam também para o verum metafísico: carro mesmo).
A línguagem tem cada uma...

Jean Lauand é professor dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP e do Unifai

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