[an error occurred while processing this directive] Ô, meu! Minha nossa Senhora! | Revista Língua Portuguesa
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Ô, meu! Minha nossa Senhora!
Ao introduzir o ponto de vista pessoal em tudo, até na língua, o brasileiro evita formas impessoais na apropriação do tempo e das situações

Jean Lauand

O psicólogo americano David Keirsey propôs uma fecunda teoria de temperamento e personalidade, a partir da combinação de quatro pares de preferências, que remontam a Jung e a Isabel Myers: 
- I/E (Introversão / Extroversão);
- N/S (iNtuition / Sensible) - A ênfase para o fato em si, o fato bruto (S) ou o fato como ponto de partida para "viagens" da intuição (N); 
- T/F (Thinking / Feeling) - A preferência pela abordagem de uma situação pelo ponto de vista "objetivo", impessoal (T), ou, pelo contrário, a abordagem pessoal dos envolvidos na situação (F);
- J/P (Judgemental/Perception) - Preferência por situações esquematizadas, fechadas (J) ou, ao contrário, pela situação aberta, o improviso (P).
Combinando as preferências, Kersey analisa 16 tipos (INTJ, INTP, ISTJ etc.) em torno de 4 núcleos básicos de temperamento (NT, NF, SJ e SP). Detalhes à parte, interessa-nos o modo como tais preferências projetam-se na linguagem, limitando-nos ao caso F, o dos que propendem a uma abordagem pessoal das situações.

Mentira sincera
Diferenças de temperamento, claro, condicionam preferências de comunicação e linguagem: 
- Alguém J exaspera-se com as imprecisões dos P e prefere marcar um encontro em hora exata aos vagos "depois do almoço"; "amanhã de manhã"; 
- As discussões de casais do tipo T e F, quanto à travessura dos filhos, viram mútuas acusações: F acusa T de ser um bloco de gelo, sem coração; T, considerando que F é de descabida brandura, que estraga o menino com desculpas para as traquinagens etc.

Outro caso de preferências F e T na interpretação semântica da mesma sentença. Os amigos F e T almoçam na churrascaria, conhecem há anos o dono, Sr. Mabilia, e F pergunta ao garçom se há banana à milanesa e abacaxi com canela. Ele traz um abacaxi excelente e desculpa-se pela banana, que, no dia, está em falta. Ao fim, o dono vem à mesa saber se estava tudo bem; ambos dizem que sim. Informado pelo garçom, desculpa-se:
- Faltou a banana, não é?
O F diz sem pestanejar:
- Não, não faltou banana, não faltou nada, estava tudo perfeito!
Ao que T responde:
- É, hoje não tinha banana!
Ao café, F e T discutem: T diz que F mentiu; por delicadeza, sensibilidade e amizade ao Sr. Mabilia, mas mentiu, pois o fato é que não havia banana! F retruca: semanticamente, só falta aquilo que está previsto e pressuposto e não se poderia dizer que, no almoço, faltou Voltaren ou Tylenol, por exemplo, pois ali não é uma farmácia.

(Como no chiste de escola:
- Você, pra burro, falta a pena.
- Tãã... burro não tem penas.
- Então, não falta nada.)
F replica que o almoço estava insuperável e, assim, a banana não faltou, não "fez falta". A discussão, claro, é interminável: 
- T diz que a distorção de F para o lado pessoal leva a ignorar fatos; 
- F, acusa T de excessivo apego à realidade "objetiva", viés que o impede de ver os "fatos humanos", para além dos "fáticos", menores.
Um interpreta o faltar, de modo pessoal, como "falta para alguém"; outro, o faltar como fático "objetivo", de almoxarifado.

Mesmo correndo risco de generalização, cabe falar de preferências nacionais ou regionais: se países como Alemanha ou Japão têm preferência J por organização, prazos e planejamento, o Brasil tende ao S; se instalam-se no T, aqui se acolhe F. A tese de Gilberto Freyre em O Brasileiro entre os Outros Hispanos:
"O hispano pode vir a ser o mestre de uma sabedoria tida, durante séculos, no Ocidente, por hediondo vício: o vício da soberania do homem sobre o tempo, no gozo da vida e na apreciação dos seus valores, com as suas inevitáveis decorrências de impontualidade e de lentidão" é vista pelo filósofo espanhol Julián Marías como a introdução do ponto de vista pessoal (a pessoa) em tudo, até na língua (Hispanoamerica. Madri, Alianza, 1986: 350).

Preferências
Marías exemplifica Freyre com a apropriação pessoal do tempo. Para além do tempo "objetivo", do relógio, o brasileiro inventa o tempo pessoal: "amanheci triste" (não "a manhã" objetiva, do relógio, do tempo impessoal), mas a minha manhã; o meu tempo, a hora de cada um, de Jesus Cristo (que fala de "sua hora") ou de Augusto Matraga.
O português conseguiu conjugar de modo pessoal o neutro infinitivo: não exercemos o impessoal "sair"; é o nosso sair: "É bom sairmos porque é hora de irmos". Para não falar em extremos - como nos fez notar Sylvio Horta, professor de filosofia da FFLCH, da USP - como o da expressão: "Minha Nossa Senhora".

O brasileiro faz o próprio impessoal virar pessoal: se o francês diz on ("En Espagne on dine rarement avant 22 heures"), no falar daqui prevalece o "você", para que o interlocutor sinta de modo pessoal a situação de que fala: "Na Espanha você não janta antes das dez". A aproximação pessoal dá-se no vocativo paulista "Ô meu". E nos usos da palavra "gente". Na Espanha, "la gente" indica a pluralidade genérica; no português esse uso (como no Hino da Independência "Brava gente brasileira..." ou em Camões: "A grita se alevanta ao céu, da gente") dá lugar a outro, carregado de sentido pessoal, como no vocativo, que evoca incredulidade, ante a falta de virtude humana: "Gente! Que crueldade fizeram com a criança!", no qual cabe o recurso ao transcendente (Deus ou Nossa Senhora) para corroborar o espanto: "Gente do céu!".

A pluralidade anônima de "la gente" é pessoalizada em "minha gente"; na ocupação do lugar dos pronomes de 1ª pessoa: "eu" (como na queixa do motorista da madame: "Pôxa, a gente se esforça para agradar e a patroa ainda reclama da gente"); "nós outros" ("Por que não vem jantar com a gente?") e "nós todos" ("Bem que a gente podia se reunir mais"). A sensibilidade e a compreensão estão contidas nas construções "ser muito gente" ou "gente como a gente". O pronome oblíquo projeta pessoalização: "Não me bata nesse cachorro" (maltratar o cão é maltratar a mim).

Há mais casos da preferência F no Brasil: o "estar com" em vez do "ter" (que suaviza a fria e dura posse do "ter", indicando gentilmente que o carro, o dinheiro etc. é de todos nós, independentemente de a pessoa "estar com o carro", "estar com dinheiro"); o excessivo uso do diminutivo, que convoca o afeto, chegando a extremos como a criação do neologismo "euzinha"! Etc.
Prato cheio para os F do meu Brasil...

Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP e autor de Cultura e Educação na Idade Média (Martins Fontes). jeanlaua@usp.br

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