[an error occurred while processing this directive] A vida como jogo | Revista Língua Portuguesa
      
  



LAUAND, Jean . A vida como jogo. Língua Portuguesa, v. 35, p. 22-25, setembro 2008

A vida como jogo
A Olimpíada fez ecoar as metáforas esportivas que migraram para o cotidiano brasileiro

Jean Lauand

A cortada de Gustavo: com a popularização do esporte, até expressões das quadras ganharam o país, como "levantar a bola"
Boa parte da atração exercida pelos esportes e pelos jogos, tema oportuno agora que as Olimpíadas de Pequim ainda estão fresquinhas na memória, reside no fato de que, de algum modo, representam a vida e diversos de seus aspectos.

Daí também a grande quantidade de metáforas esportivas. Metáforas presentes até na Bíblia: São Paulo compara os esforços requeridos pela vida cristã aos dos atletas e corredores que almejam o primeiro prêmio (I Cor. 9: 24 e ss.). No século 19, ante o preconceito de certas igrejas contra o esporte ("culto ao corpo", desrespeito ao "dia do Senhor" etc.), esse "aval" do apóstolo era esgrimido por cristãos esportistas, que invocavam esse versículo da Epístola aos Coríntios (daí o famoso time inglês Corinthian, que teve seu nome adotado na fundação do nosso Corinthians).

Já no primeiro tratado de xadrez do Ocidente, o Libro del ajedrex, composto (a partir dos tratados árabes) por D. Alfonso o Sábio, em 1283, os jogos aparecem como metáforas da vida. Nessa obra, a invenção do xadrez é atribuída a um concurso que um rei teria feito precisamente para premiar o sábio que apresentasse um jogo que melhor representasse a condição humana.

Naturalmente, o xadrez aparece como modelo trazido pelo candidato que acreditava "que mais vale a inteligência do que a sorte, pois quem se guia pelo juízo inteligente faz suas coisas ordenadamente e, mesmo que perdesse não teria culpa, pois estaria agindo segundo modo conveniente"; enquanto outro sábio, que considerava a sorte como fator preponderante, apresentou o jogo de dados; etc.

Popularidade
Dentre todos os nossos referenciais lúdicos de metáforas, evidentemente, de longe é o futebol que ocupa o primeiríssimo lugar, sem competidor próximo. Para expressar situações de nossa vida profissional, empresarial, escolar, familiar, amorosa etc. é a centenas de situações do futebol que recorremos.

Assim, se alguém tem o domínio de uma situação, "está com a bola toda". Se a pessoa comete uma falha grosseira, "pisou na bola"; mas se teve um bom desempenho, "deu show de bola". Os exemplos são inúmeros (ver página 24).

Enquanto outros jogos praticamente fornecem só metáforas prefixadas, a força psicológica do futebol é tanta que permite improvisar metáforas em situações novas, como, digamos, a de um vendedor que se queixa a seu gerente que o colega lhe deu "um carrinho por trás" e efetuou indevidamente uma venda a um cliente que era dele; o acusado pode defender-se replicando que "foi na bola" ou que era " bola dividida"; enquanto o primeiro vendedor insistirá que foi "carrinho sem bola", "agressão fora do lance" etc. 

Naturalmente, esse domínio do futebol decorre do enorme interesse que desperta em toda a população, que, desse modo, dispõe de um vivo e riquíssimo código alternativo de comunicação. Curiosamente, muitas metáforas procedem de campos que despertam, hoje, muito pouco interesse nos falantes: se, digamos, o vôlei e o basquete atraem muito mais interessados, não são páreo, no entanto, para o turfe, o bilhar ou o boxe. A razão talvez esteja na particular configuração destes, que produz potencialmente situações de metáfora; além de ter a seu favor, uma tradição estabelecida numa época na qual eram mais populares e pouca gente se interessava por vôlei ou basquete.

Eleições
Mesmo pessoas que não acompanham corridas de cavalos intuem que as emoções do turfe emparelham com as de outras disputas da vida (recorde-se o famoso tango Por una Cabeza) e falam normalmente que, digamos, nas eleições municipais de São Paulo, a disputa está entre Alckmin, Kassab e Marta, e Maluf corre por fora (o mesmo Maluf que antes de o PT chegar à presidência dizia que o PT não era "cavalo de chegada") ou é um azarão. Se Alckmin e Kassab se aliassem, a eleição seria uma "barbada" etc. Enfim, é páreo duro e só na reta final é que se saberá qual candidato cruzará o disco de chegada. Claro que me refiro aos candidatos dos partidos grandes, porque os outros não pagam placê.

Naturalmente, com o PSDB dividido, Alckmin, que é a bola da vez para ser fritado, está numa sinuca de bico e Serra, que só confia no seu taco, deu uma grande tacada ao emprestar-lhe um apoio mais para formal. Aliás, ele já tinha cantado essa jogada nas eleições presidenciais: era óbvio que era Lula que estava na boca da caçapa. (note-se que "cantar a jogada" é expressão originária do snooker, que adaptou-se também ao jargão futebolísitico).

Seja como for, Alckmin sempre prefere o nocaute a jogar a toalha: o que denota notável falta de jogo de cintura: ainda mais com tantos pesos pesados da política paulista na disputa. Maluf, que mesmo quando está nas cordas, nunca acusa o golpe, será que vai usar nos debates a técnica do clinch e a de aplicar sutilmente golpes baixos...?

Curiosamente, do vôlei e do basquete, quase não há, entre nós, metáforas: procurando no Google, encontrei uma ou outra do tipo: "não gostei da entrevista dos Nardoni no Fantástico: o repórter só levantava a bola para eles cortarem". E, quando, após infrutíferas buscas por imagens do basquete, finalmente encontrei um comentário - no Portal G1 da Globo - de que certo produto da  Amazon: "pode até não ser uma cesta de três pontos, mas é no mínimo uma bela enterrada", mas tratava-se de tradução de um artigo do New York Times...

Entre as escassas contribuições de outros campos, encontram-se o "grid de largada" e a "pole position" (digamos, para a "corrida" eleitoral); a "ginga" da capoeira (que dispõe de um riquíssimo léxico, mas é muito eso­térica para transcender o âmbito dos iniciados e atingir a grande massa) ou o "estar em xeque" do xadrez.

Imaginação
O xadrez medieval (para não falar do árabe...), responsável pela transformação da palavra "partida" em sinônimo de jogo (ver quadro na página 23), dá a chave para a compreensão da tendência a criarmos metáforas a partir dos jogos e competições esportivas: a imaginação.

Ao contrário do xadrez moderno, que consideramos como mera estrutura lógica; na Idade Média, o jogo era visto como excitantes manobras de guerra (por exemplo, a torre que, tal como a torre que sitiava o inimigo, só podia mover-se horizontal ou verticalmente; os pobres peões, que sucumbiam em grande quantidade na batalha etc.), de política de Estado, de vida etc. E o vemos utilizado em muitas pregações religiosas da época (o peão que é promovido ao chegar à oitava casa e se enche de soberba; os maus bispos, que se movem na diagonal por interesses escusos e oblíquos, etc.).

Jadel Gregório, promessa que ficou só em sexto lugar no salto triplo: apesar do fiasco do Brasil nos Jogos, olimpíada renovou uso de termos esportivos no cotidiano

Mas a medalha de ouro vai para a imaginação oriental, tão poderosa que chega muitas vezes a pensar a realidade como metáfora (para o Alcorão, cada coisa no mundo é um sinal de Deus) e, até mesmo, a metáfora como realidade. No extremo desse caso, entre as célebres Rubaiyat (literalmente: "quadrinhas") de Omar Khayyam encontramos esta preciosidade:

"Para falar claramente e sem metáforas [!?)] / Somos as peças do xadrez jogado pelo Céu / Que brinca conosco no tabuleiro do ser /  E depois... voltamos, um por um, à bolsa do Nada."

A imaginação popular está de prontidão para dar vida à metáfora esportiva. Não será preciso chegar à próxima Olimpíada para perceber isso.

METÁFORAS BRASILEIRAS
Sentido Expressão
Favorecer Levantar a bola (vôlei)
Ser vencido arrasadoramente Ir a nocaute (boxe)
Dar-se por vencido Jogar a toalha (boxe)
Capacidade de adaptação Ginga (capoeira), Jogo de cintura (boxe)
Momento decisivo Xeque-mate (xadrez)
Centro das atenções Bola da vez (sinuca)
Impasse Sinuca de Bico
Buscar alternativa Correr por fora (turfe)
Dificuldade Páreo duro (turfe)
Hipótese confiável Barbada (turfe)



IMAGENS DO FUTEBOL
Sentido Expressão
Tem o domínio de uma situação está com a bola toda
Comete uma falha grosseira Pisou na bola
Teve um bom desempenho Deu show de bola
Identifica-se com os ideais da instituição Veste a camisa
Aposenta-se Pendura as chuteiras
Busca o bem da empresa e não aparecer Joga para o time
Recorre à lei para prevalecer sem razão Quer ganhar no tapetão
É retraído e não se mostra como é Está na retranca
Leva os subalternos a orientação superior Faz o meio de campo
Tem experiência Tem cancha
Fracassa no namoro por falta de iniciativa Quem não faz, toma

- A excelência de Monte Cristo
- O acordo está vivo
- Por que porquê ?
- O morro dos jesuítas

 
 
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