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Junho/2013


Esporte

A arqueologia é dona da bola

Um século de transformações na linguagem do futebol brasileiro

Por Jean Lauand

Quando se importa uma realidade cultural, importa-se, em alguma medida, o léxico próprio dessa realidade. Com o passar do tempo, há ajustes e o vernáculo ganha espaço.

O xadrez, por exemplo, chegou ao Ocidente medieval com os árabes, que o tomaram dos persas, e hoje há reminiscências dessas origens em nomes de peças e lances: no espanhol para "bispo", alfil (al-fil - o elefante); no inglês para "torre" (rook), no lance do roque (rukhkh - torre); no xeque, que visa o rei (shah) ou o "mata" (xeque-mate).

Na informática, há muitas palavras do inglês (mouse, link, site, software, etc.); outras já ganharam forma vernácula (programa, disco); e há casos em que convivem duas formas: download/baixar, deletar/apagar.

No começo do século passado, o futebol era realidade importada e, se hoje o presidente da Fifa proclama, como realidade evidente, que o Brasil é o país do futebol, na época Graciliano Ramos dizia que o futebol era moda passageira...

Importação
Persistem, hoje, às vésperas da Copa das Confederações, termos de origem inglesa, como o próprio "futebol": pênalti, drible, gol, chute, time, craque (desde sempre usado no turfe, outrora popular, tardiamente, só na década de 40, foi aplicado ao futebol), etc. Minha geração pegou o tempo em que os anglicismos eram mais numerosos: falava-se em goal-keeper (goleiro), corner (escanteio), offside (impedimento) etc.

Mas nos primeiros tempos entre nós do "esporte bretão", a presença de termos ingleses era dominante. Uma amostra interessante desse fenômeno de linguagem é o relato de um "match", recolhido do acervo do Estadão, de 22 de abril de 1910, p. 5 (www.acervo.estadao.com.br):

Segundo match de selecção - Ypiranga vencedor por 5 goals a 2
Realizou-se hontem, como fora anunciado, o segundo match de selecção, entre o Ypiranga e a 'A. A. Villa Buarque'. Os teams apresentaram-se bem treinados porém faltando ainda aos seus jogadores a necessária calma para se manterem nos seus postos até o fim da luta."

À época, grafava-se foot-ball (só a partir de 1920, o Estadão passaria a "futebol", sem abandonar foot-ball), goal (poucos anos depois viria o sinônimo nacional, já em desuso: "tento"), team e match conviviam com "equipe" e "partida". 

A vantagem de um acervo do porte do que O Estado de S. Paulo lançou em maio de 2012 (quando disponibilizou a versão digital de 2,4 milhões de páginas publicadas desde 1875) é perceber que a imprensa dos primórdios do futebol impunha-se o duplo dever de informar os resultados e ensinar os termos e rudimentos do esporte.

Torcedor
Assim, o artigo continua. Para que os jogadores se mantenham em seus postos e não fiquem "amontoando-se todos sobre a bola" é necessária a ação do captain (técnico):

"a intervenção energica de um captain, que obrigue seus jogadores a guardar suas posições (...) [possibilitando] os passes, que constituem o encanto deste salutar sport britannico".

O cronista passa a falar do público, dividindo "as archibancadas em dois grupos. De um lado os 'torcedores' do 'Villa'...". Já em 1910 usa-se a palavra "torcedor"; as aspas são provavelmente para indicar a procedência oculta desse termo.

Recolho do site do Fluminense a versão mais conhecida da etimologia de "torcedor" (www.fluminense.com.br/site/futebol/historia/capitulo-i-o-surgimento/outros-simbolos):

"É claro que sendo o Fluminense o clube da sociedade carioca, a presença feminina nos jogos era uma constante. O escritor Coelho Netto, pai do grande atleta tricolor Preguinho e seguidor apaixonado do Fluminense, também era figura obrigatória nos gramados. Pois foi esse importante personagem o responsável pela criação do termo 'torcida', que hoje serve para designar quem simpatiza com este ou aquele clube. Observador atento, Coelho Netto notou que quando o time atacava ou era atacado, as mulheres que compareciam aos jogos, com seus belos e quentes vestidos rendados, num misto de ansiedade, calor e nervosismo, empunhando sombrinhas, torciam suas luvas e lenços encharcados de suor. Em uma de suas colunas após um dos jogos, Coelho Netto chamou essas mulheres de 'torcedoras'. Pronto, estava criado o termo que até hoje é símbolo da paixão clubística".

O relato é plausível: torcer as luvas é clássico gesto de impaciência, ansiedade ou espera (como em A Ilustre Casa de Ramires, de Eça); "torcedor" aparece pela primeira vez no Estadão em 1906 (o Fluminense foi fundado em 1902). No primeiro gol do Ypiranga, um tropeço do goleiro (termo que o Estadão só usará em 1931), a decisão do juiz (o artigo usa também referee) causou polêmica:

"Britto, goal-keeper do 'Villa Buarque'..., parara um shot do team adversário sob a trave do goal. Perseguido por um forward contrario, e tendo a bola nas mãos, arremessou-a para longe, porém, como se achava sobre a linha, ao fazer o movimento com o braço, para traz, afim de atirar a bola, passou a por dentro do goal...".

Pixotada
O jogo prossegue com driblings e goals que aumentam o score; e half-backs deixando livres os estremos; que fazem bons rushs, ocasionando corners ("escanteio" só começa a ser usado - de início, raramente - em 1926). "Amphiloquio (in side left) do Ipiranga, a 20 jardas do goal, passou para Hugo, que com um shot rasteiro e enviezado, vasou o goal (termo que hoje permanece só na expressão "goleiro/defesa menos vazado") do Villa.

Em cem anos, mudanças e permanências no léxico do futebol; muitos acréscimos para atender jogadas novas (bicicleta, pedalada, drible da vaca etc.), novas atitudes ("catimba", que aparece no jornal em 1967; "firula", em 1977, etc.) ou novas realidades advindas da complexidade externa ao gramado (cartolas, tapetões, etc.). Todas agora rastreáveis graças ao poderoso instrumento de pesquisa disponibilizado pelo jornal O Estado de S. Paulo.



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