Linguagem
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Março/2013


Semântica

"Excelenciou" na grande área

Verbos como "sobrar" são especializados para fornecer sentidos que o léxico nem sempre fornece

Por Jean Lauand

Uma notável qualidade da língua inglesa é o fato de o substantivo ser também já quase automaticamente um verbo. Enquanto o português tem de dizer: "Eu vou pôr isto no micro-ondas", o inglês diz simplesmente: "I'll microwave it" (claro que entre nós não cabe: "Vou micro-ondá-lo").


Mais um par de exemplos, boa amostra do falar real quotidiano nos Estados Unidos, tomados da premiada série cômica Everybody Loves Raymond (no Brasil, Raymond & Companhia), exibida na TV de lá entre 1996 e 2005.


No episódio 7 da 1a temporada ("Your place or mine?"), Raymond Barone (Ray Romano) está cansado da intromissão, em sua vida, da superprotetora e cuidadora mãe, Marie (Doris Robert). Num diálogo especialmente histriô­nico, diz a Marie que, se ela quiser "bebezar" alguém (tratar alguém como criança, mimar com cuidados), que "bebeze" Frank (o veterano Peter Boyle, já falecido), seu marido...: "Look, if you want to baby somebody, go baby Dad".


No episódio 23 da 4a temporada (Confronting the attacker), quando Marie começa a ameaçar Frank, chamando-o com a prosódia típica do vocativo de repreensão ("Fraank...!"), o marido responde com o inusitado verbo "to Frank": "Não me frankize" ("Don't Frank me").
Verbos denominais são aqueles derivados de substantivos ("soberba" está na raiz de "assoberbar", por exemplo: ao virar verbo, especializou o sentido, de "arrogante" e "vaidoso" para "atarefado" - afinal, mesmo orgulhoso, o soberbo precisa suar para, como deseja, ficar por cima). Por influência do inglês, esse fato gramatical tem se intensificado ainda mais no Brasil. Por exemplo, a imprensa esportiva tem popularizado o neologismo "medalhar" (no sentido de "conquistar medalhas": "Fulano não medalhou nas Olimpíadas").


Nossas dificuldades com as ações verbais são, por vezes, supridas por gírias, verbos denominais ou novos usos de velhos verbos. Se podemos dizer tranquilamente que o goleiro Cássio foi excelente na final contra o Chelsea, no plano verbal, já não é tão fácil: não há o verbo "excelenciar" e temos de recorrer a formas menos eruditas, como: "arrasou", "detonou", "apavorou" etc. Já "Tiger Woods excelled" encontra-se aos milhares na imprensa.


Excelenciar
Para significar excelência, há anos vem sendo usado, com sentido ainda não dicionarizado, o verbo "sobrar": a manchete do Terra Esportes, no glorioso 16/12/12, foi precisamente: "Cássio sobrou na área corintiana nas bolas aéreas". Até o vetusto Estadão o usa, parcimoniosamente. Muito mais usado é outro novo sentido de "sobrar": atingir, caber, "coisa ruim ou desconfortável" (Houaiss), ainda não contemplado pelo Aurélio. Nesse sentido, uma das Frases do Ano de 2012 foi a bombástica declaração de Marcos Valério (Folha, 3/11/12): "Só não sobrou para o Lula porque eu, o Delúbio e o Zé [Dirceu] não falamos".


A acepção, popular e coloquial, de "sobrar" no sentido de excelência, acaba coincidindo com o clássico conceito de virtude. De fato, o conceito grego de virtude, areté, é melhor traduzido por excelência. E para S. Tomás de Aquino, o melhor referencial da teologia cristã medieval, a virtude dirige-se ao ultimum potentiae, nada menos do que o máximo do que se pode ser.


Por isso a extrema cautela na época em se atribuir a alguém virtude, considerada mais um ideal assintótico do que algo efetivamente atingível. E, no caso da tradição cristã, especialmente para algumas virtudes, há que se contar com a graça, a força sobrenatural dada por Deus, pois transcendem os limites do humano. Daí que alguns poucos goleiros, que, por Deus, manifestam virtudes heroicas e operam milagres, sejam canonizados, como o caso de São Marcos do Palmeiras e, a partir de Yokohama, São Cássio.


Voltando à escala humana, virtude pode ser aplicada, digamos, ao exímio cobrador de faltas Marcos Assunção, um autêntico virtuose (claro que ele não converte todas, afinal sempre pode haver um São Cássio do outro lado).


Confundente
Mas o que dizer daqueles especiais gols do Neymar ou do (absolutamente incrível) gol do Falcão em 18/12/12 no jogo das estrelas do Futsal (o vídeo no YouTube https://www.youtube.com/watch?v=1SGo4RC1FNM beirou os 4 milhões de acessos em 4 dias): uma indescritível carretilha de costas... os comentaristas hesitam até em dar-lhe um nome, talvez porque duvidem que se possa repetir.


O site de esportes internacional Sportygossip diz: "Falcao has exceeded himself with this unbelievable goal". Não é meramente exímio: excedeu, sobrou.


E com isto viemos dar com uma importante nota do conceito árabe da palavra virtude: fḍl (faḍylah).


Como se sabe, na língua árabe as palavras são expressas fundamentalmente por radicais triconsonantais, no caso f-ḍ-l, e costumam ser muito mais confundentes do que as "correspondentes" ocidentais. Um exemplo de pensamento confundente dá-se com o nosso "dever", que o inglês diferencia em cerca de meia dúzia de distinções. Assim, no outro dia, dirigindo-me a um colega, vizinho de prédio, a quem frequentemente dou carona, perguntei:


"E aí, vai à USP amanhã?".
Sua resposta foi:
"Devo ir".


O leitor (e mesmo o interlocutor) não tem a menor possibilidade de saber o que significa esse "devo", entre nós, muito confundente. Como traduzi-lo, por exemplo, para o inglês (should, have to, supposed to, must, ought...)? Pois, esse "devo" pode ser interpretado desde a mais absoluta e imperativa decisão de ir ("Eu devo ir, senão a USP desmorona") até a mais descomprometida e frágil intenção ("Eu não falei que iria, eu falei 'Devo ir', e aí apareceu um desenho animado legal na TV e eu não fui").


Allah
Assim, em torno de fḍl confundem-se, entre outras, as ideias de sobrar (exceder, transbordar) e virtude. A virtude, portanto, não é associada a um "mero" máximo, mas ao sobrar, ao transbordante...


Essa acumulação semântica, para eles tão conatural como o nosso "devo ir", permite sugestivas situações. Como no caso de um pedido qualquer: "por favor" em árabe é precisamente: min faḍlik, literalmente "da sua transbordância (/ virtude etc.)". "Da sua transbordância, poderia me dar um cigarro"; que, certamente, não se refere a uma transbordância de cigarros, mas à generosidade da alma da pessoa a quem se pede o favor.


Outra sugestiva situação é a de quando num happy hour sobra um último pastel e resolve-se o impasse de a quem cabe o petisco, oferecendo-o a um dos comensais, dizendo: "Al-faḍli lil faḍyl" - o que sobra é para o virtuoso (/ transbordante / preferido...).


Aplicada a Allah - à Sua transbordância, favor, preferência, virtude... - fḍl aparece no Alcorão 62 vezes. Allah supera, excede, transborda... Na sura IV (73), são prometidos prêmios divinos aos que fazem boas obras e ainda mais: "Allah lhes acrescentará algo de Sua transbordância". Há notórios favores de Allah para a humanidade, mas a maioria dos homens nem agradece (II, 243; X, 60; XII, 38 etc.).


A tradição muçulmana dos 99 nomes de Deus reconhece que há ainda, no Alcorão e nos hadith, outros nomes (que sobram) de Allah: e certamente o Transbordante (o Obsequioso) é uma dessas características divinas (XXVII, 73), já que os homens, que mal dão conta do básico, só em raríssimos casos, e com os devidos descontos, podem ser chamados de virtuosos.



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