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Maio/2012


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Velha expressão da nova geração

O universo das frases feitas que sobrevivem apesar de perdidas as referências de origem

Jean Lauand

Armie Hammer e Johnny Depp, como Lone Ranger e Tonto na nova versão para cinema da série de TV Zorro: "Nós, quem, cara-pálida?"


Uma vez estabelecida uma frase feita ou uma metáfora, ela pode acabar prevalecendo sobre o termo original sobre a qual ela se produziu. Hoje em dia, por exemplo, quase ninguém sabe o que é "bugalho", termo da fitopatologia, que significa "noz de galha" (Houaiss, 2009); mas muitos usam a frase feita "(confundir, misturar) alhos com bugalhos" e a metáfora "esbugalhado".

"Bugalho", em consulta ao Google, aparece com 239 mil resultados (19-3-12); muitos deles como sobrenome (José Bugalho, Maria Bugalho etc.) e muito associado à expressão "alhos (e/) com bugalhos" (201 mil no Google). Já "olhos esbugalhados" é mais conhecido (228 mil no Google) e o termo metafórico acabou prevalecendo sobre o original, que quase ninguém conhece.

Geracional
A linguagem está muito ligada às gerações. Julián Marías acertadamente estabelece o espaço geracional, em termos de participação social, em quinze anos. Então, com a atual média de vida do brasileiro, convivem cinco gerações no país. As distâncias de linguagem são por vezes acentuadas e se, por um lado, o bisavô não entende as gírias da garotada, por outro, os jovens usam cegamente as frases feitas dos mais velhos. E não é fácil prescindir delas. Como expressar rápida e eficazmente (o amthal tem esse aval), por exemplo, a vontade de A, em determinada situação, de abortar a tentativa do interlocutor, B, de envolver A em um problema que é só de B? E mais: dando a entender, ademais, a ironia de que B desfruta dos sucessos sozinho, mas na hora do aperto, quer dividir o problema com A, mas que desta vez passou da conta?

O exemplo a seguir ilustra muito bem o gap geracional de que estamos falando. A situação se resolve com a usadíssima expressão "Nós quem, cara-pálida?" ("quem cara pálida" aparece, segundo o Google em 110 mil sites! em 26-12-11).

Cara-pálida
Numa conversa entre pessoas de 60 anos, eles sabem muito bem a finíssima ironia e devastador conteúdo do que estão dizendo; mas e os adolescentes, que também se valem da expressão? No "Yahoo - respostas", encontrei a pergunta:

Qual a razão de se chamar o índio [sic] de "cara-pálida"? Até hoje não entendi isso... Que significado tem chamar o índio de "Cara-Pálida"!? Bjus e obrigada pelas respostas!!  (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20070312075324AAZ0sxz, 26-12-11)

A geração dessa mocinha (e mesmo a de seus pais) nunca terá assistido a westerns de índios (os peles- vermelhas em contraposição aos caras pálidas); mas há cinquenta anos esses filmes eram o pão de cada dia, no cinema e na TV. E, como todos de minha época se lembram bem, o Zorro não era (principalmente) o de capa e espada, mas um ranger mascarado (daí também a expressão "ficar mascarado" do futebol): o mascarado Zorro enfrentava casos incríveis e perigosíssimos, afetando naturalidade).

A expressão "Nós, quem, cara- pálida?", procede de uma piada do início dos anos 60. A TV brasileira exibia o seriado do herói Lone Ranger, que, no Brasil, foi batizado de Zorro; um ranger sempre acompanhado de seu fiel e servil índio Tonto. Um dia Zorro e Tonto encontram-se encurralados por índios sioux de um lado; comanches, apaches e moicanos pelos outros lados. Quando acaba a munição, Zorro se lamenta: "Nós estamos perdidos, Tonto". Tonto faz sua melhor pose de índio, capricha no sotaque e responde: "Nós, quem, cara-pálida?".

Agora que a Disney lança uma nova versão cinematográfica da dupla de heróis, com Armie Hammer como Lone Ranger e Johnny Depp no papel de Tonto, há maior chance de as novas gerações não ficarem boiando toda vez que se questionar da referência a que corresponde a expressão.

Amigo da onça
Interessante também é o caso da expresão "amigo da onça" (1,89 milhão no Google, 19-3-12). Como se sabe, certos provérbios e expressões estão ligados a histórias ou anedotas, resumindo-as numa breve sentença. É o caso, entre nós, dessa expressão, proveniente daquela piada do caçador que está narrando ao amigo os percalços de seu encontro na selva com uma onça e o amigo, impaciente por saber o fim da história, interrompe com perguntas que antecipam a tragédia: "E a sua espingarda, não funcionou?", "E, aí, você escorregou?" Até que o caçador se aborrece e indaga: "Espera aí, afinal, você é amigo meu ou amigo da onça?".

A piada é da década de 40 (ou até anterior) e a expressão impôs-se com a genial criação do cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão (1924-1961), em 1943, para a então importante revista O Cruzeiro, na qual apareceu até 1972 (pelas mãos de outro ilustrador, Carlos Estevão).

Olhar atual
A série de cartuns com o personagem sofisticado mas de espírito de porco até hoje é lembrada com carinho - e tem sido capaz de inspirar obras contemporâneas, como vinhetas da MTV, novas séries de charges e filmes como o curta-metragem A Última do Amigo da Onça (direção de Terêncio Porto, 2005, 17 minutos), que imagina o encontro de Péricles com seu personagem no último dia de 1961.

Mas a perda de conexão entre a expressão "amigo da onça" e o chiste que a gerou chegou a tal ponto que a piada foi retomada num programa da Escolinha do Gugu (rede Record, 18-3-12), pelo personagem caipira José Bento (ator João Elias), mas sem o desfecho clássico: "Você é amigo meu ou amigo da onça?" Embora de redação e interpretação brilhantes, a piada ficou empobrecida, reduzida a uma mera "mentira de caipira". 

José Bento - ...tinha um murão de pedra na minha frente e eu pulei.
Prof. Gugu - Mas onça também pula muro!

JB conta que fugiu por um espinheiro e PG argumenta que onça também atravessa espinheiro. JB narra que atravessa um rio, e PG lembra que onça também nada.

JB - Tá bom, aí ela me pegou.
PG - E o que aconteceu?
JB - Eu morri...

Perdeu-se a metáfora original. Esse fato merece uma reflexão pedagógica mais ampla.

Língua-realidade
Só se dispomos de linguagem viva podemos acessar uma realidade: sem a linguagem é muito difícil perceber a realidade. As centenas de termos do futebol é que permitem a compreensão do jogo, tanto em seus aspectos técnicos quanto psicológicos (expressos por termos como: catimba, tabu etc.). A catimba pode ser punida pelo juiz porque existe a palavra catimba. E é um fato inquietante que não disponhamos de linguagem especializada para diferenciar sentimentos (não temos palavras para diferenciar amores tão diferentes como "amor pelo irmão", "pelo filho", "pelo cachorro", "pelo time" etc.), mas encontramos precisão de alta definição nas ligeiras variações de um lance determinado de chutar uma bola: bicicleta, meia-bicicleta, puxeta, voleio etc.

A existência da linguagem viva permite combater socialmente atitudes indesejáveis: é mais fácil para o italiano do que para o brasileiro matar as abusivas pretensões do facilone, porque a língua italiana dispõe da específica palavra "facilone", enquanto nós só temos o genérico "folgado".

Estou dando uma carona para alguém e ele diz: "você pode me dar uma paradinha nesta agência de banco, eu vou só abrir uma poupança com o gerente e volto em no máximo cinco minutinhos". Na Itália, a própria existência da palavra já impediria a descabida proposta: todo mundo sabe que abrir uma conta de poupança não é assim fácil: leva no mínimo quarenta e cinco minutos. Só o facilone (talvez sinceramente...) imagina que não há fila, que o gerente vai estar lá, que os papéis vão fluir rapidamente etc.

Assim, uma das grandes contribuições da metáfora é a de dotar toda uma comunidade da possibilidade de identificar rapidamente e de modo enxuto (e, se for o caso, desmascarar) atitudes que, sem a metáfora, seriam muito abstratas ou complicadas para a comunicação: com a genial metáfora da gíria: "não é minha praia", o carioca expressa - como se diz em espanhol: "de modo gráfico", contundente - que não se sente à vontade naquela situação, não é sua especialidade, que prefere outra coisa que lhe seja familiar etc. (os ingleses, no caso, dizem, também de modo expressivo: It is not my cup of tea!).

Expressividade
A expressão "amigo da onça" faz visualizar uma sutil atitude tão comum no brasileiro e que a língua alemã designa por Schadenfreude, a alegria, o gostinho de ver o outro se dar mal: um acidente na estrada congestiona também a pista do sentido contrário: cada motorista quer avaliar com calma os estragos. Um time brasileiro vai enfrentar um Tegucigalpa na Libertadores, a torcida dos outros times compra quilos de rojões para o caso de sair um gol do Tegucigalpa. E, claro, não assume publicamente essa preferência e, em todo caso, dirá que sua bisavó paterna era hondurenha e sente uma simpatia pelo "Tegu" desde criancinha...

Quando essa atitude se torna ativa e induz sutilmente o outro a uma fria, temos o amigo da onça, infelizmente hoje uma metáfora opaca.


Jean Lauand é professor titular da Feusp (aposentado) e do programa de pós-graduação em Educação da Universaidade Metodista de São Paulo. 



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