Retórica
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Abril/2015


Publicidade

O marketing da rejeição

Incorporar as aversões do consumidor estabeleceu uma tradição retórica no pensamento publicitário

Jean Lauand

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A campanha "Vai que..." parte dos defeitos dos serviços do gênero para tirar sua força


Um grande desafio das agências de publicidade é promover um produto ou serviço que conta com a rejeição ou a desconfiança do público. Um procedimento comum das agências nesses casos é assumir, ao menos implicitamente, essa aversão e tentar diferenciar o seu cliente, que seria a exceção:

"Sim, a concorrência atua lamentavelmente, mas a marca X é a única que merece sua confiança".

Se a campanha funcionar (o que é problemático, pois também reforça a imagem negativa geral e precisa convencer o potencial consumidor das razões da singularidade de seu cliente), além de blindar a marca X contra a rejeição, ainda desfere um golpe nos concorrentes, confirmando o consumidor em seu ato de torcer o nariz...

Assim, por exemplo, em 2005, o Unibanco lançou o agressivo slogan: "O banco que nem parece banco". Os correntistas estão insatisfeitos com o atendimento, mas o Unibanco seria diferente... Assumindo, também, que o público se decepciona quando realmente precisa da seguradora, na mesma época a Unibanco AIG Seguros lançou o slogan:

"Nem parece seguradora".


Outros

Também nessa linha, a Mapfre se intitula "a seguradora diferente" ou, em versão light, "a seguradora global de confiança" (porque as outras, na hora em que você precisar, te enrolam). Há anúncios de "o plano de saúde que cabe no seu bolso", mas nenhum se atreveu ainda a atingir a principal suspeita do potencial cliente:

"Plano tal: na hora H não te deixa na mão"!

Contra a suposta ineficiência de anúncios classificados dos jornais, há anos o Estadão vem apregoando que "a diferença é que o Estadão funciona".

E quando a SBP insiste que o produto é "Terrível contra os insetos. Contra os insetos" instila a suspeita de que os demais inseticidas e repelentes podem intoxicar suas crianças etc.

E se os outros desodorantes, depois de uns minutos de perfuminho, te deixam exalando maus odores, Rexona "não te abandona" (ou, se outros deixam marcas brancas na roupa, Rexona não). A Sky vende seu pacote por um certo preço, anunciando: "Não é promoção, é preço" (porque as outras, após te fisgarem com efêmera oferta promocional, salgam o preço...).

Um dos setores mais rejeitados pelo público é o de telemarketing, às vezes por culpa de operadores robotizados, insistentes e especializados em "oportunamente" desconversar etc. Por curiosidade, procurei no Google "telemarketing inteligente" e, de fato, apareceram empresas com esse apelo publicitário...

Outro problema a ser enfrentado na publicidade é vender produtos ou serviços que o potencial consumidor, em geral, não quer nem considerar: seguro contra sinistros ou para garantir exames de próstata ou testes de HIV etc. 

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Ao dizer "A seguradora é diferente", slogan pressupõe: as outras enrolam


Law

Nesse campo, algumas considerações prévias para compreender as sutilezas de linguagem nas diversas peças e momentos da campanha "Vai que...", que se propunham evidenciar que "é melhor ter" Bradesco Seguros.

"Vai que" é o nosso correspondente mais próximo de uma distinção árabe (e semita em geral): a partícula law.

O árabe (e as línguas semitas) distinguem em três níveis aquilo que, em nossa língua, se expressa na única conjunção "se", para nós confundente, e podendo situar-se - quanto à possibilidade de realização - em três níveis distintos:

1. Um primeiro nível é o "se" (em árabe: idha) que expressa uma certeza (ou algo muito provável) de que algo vai se realizar: "Se a lâmpada queimar, não adianta estrilar nem bater o pé" (antigo jingle da GE), "Se o teu filho te der alguma preocupação, tem paciência". É um "se" que poderíamos até substituir por "quando", porque certamente um dia a lâmpada queimará e filho sempre dará alguma preocupação.

2. No extremo oposto, situa-se o "se" (law) que expressa uma impossibilidade (ou quase): "Vai ver se eu estou na esquina", "Se não houver políticos corruptos, o Brasil será o maior país do mundo".

3. O "se" mais normal (in), que expressa dúvida real: pode ser que sim, mas também pode ser que não. Como quando a grávida diz: "Não sabemos ainda se é menino ou menina"; ou o convidado no celular: "Não sei se vai dar para chegar a tempo: o trânsito está meio congestionado".

Em culturas como a nossa, e mais ainda na semita, permeadas de tabus de nomeação, há regras implícitas na convivência que tornam complicado prever possíveis doenças, mortes ou problemas em geral: enunciar algo, mesmo hipoteticamente, é confundido com a realidade ou com o desejo de que aconteça ("vira essa boca pra lá!!). Uma mera e inocente conjectura ("se o seu filho não for aprovado no vestibular"; "se ele ficar doente..." etc.) pode facilmente ser confundida com olho-gordo ou maldição, especialmente se o "mau agouro" vier a acontecer. Daí a antiga fórmula "Deus nos livre e guarde" ou o bater na madeira etc. antes de qualquer alusão a tribulações.

Nesse quadro, o law serve como atenuante: se tivéssemos equivalente português (e este "se" já é um law, pois não dispomos desse "se" em nossa língua), aliviar-se-iam situações embaraçosas, como a do vendedor da loja de roupas tamanho grande, que quer convencer o gordo cliente a comprar uma calça com cintura elástica, pois se ele engordar, a calça se ajustará... Como dizer: "É melhor comprar esta, pois se o senhor engordar...", sem o risco de perder o cliente? (ou como dizer ao vovô muito idoso que está mais do que na hora de fazer o testamento? ou avisar o marido traído? ou a mãe do gay...? etc. ).

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Propaganda parece falar de outro gênero de produto, mas critica é a concorrência


Estilo

Em exemplos como esses - na falta de um law, que já afirma a impossibilidade - a criatividade brasileira recorre a circularidades e enrolações como:

"É melhor o senhor levar esta calça porque... isto não vai acontecer, mas vai que o senhor, temporariamente, engorde um pouquinho, ela se ajusta até o senhor voltar a emagrecer...".

Para o caso da admissão da ideia da morte, ficou famosa a frase atribuída a Roberto Marinho (os funcionários mais antigos da Globo referiam-se a ele como "Deus"):

"Se um dia eu vier a faltar...".

Sem querer (ou "sem querer, querendo...") já introduzimos nosso "vai que" como um Ersatz (do alemão, "substituto") do law. É o caso da campanha publicitária da Bradesco Seguros, "Vai que".


Campanha

André Kassu e Marcos Medeiros, diretores de criação da AlmapBBDO, contaram à revista Propmark que o primeiro diagnóstico que fizeram antes de desenvolverem a primeira fase da campanha, em 2010, indicava que todos os seguros falavam em proteção e tranquilidade - o que consideraram um equívoco, já que uma pesquisa com consumidores apontou que ninguém acreditava naquilo.

"Em cima disso, a gente criou ''''Vai que...'''', para mostrar que imprevistos acontecem sim, uma hora podem acontecer e, quando acontecerem, melhor a pessoa contar com a Bradesco Seguros", declarou Kassu na ocasião.

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Mensagem instila suspeita de que a concorrência pode intoxicar


Vai que

No começo da campanha, os filminhos mostravam cenas de perigo irreais: o ator caminhando sobre uma estreita viga no alto de um prédio em construção ou prestes a ser atropelado por um trem em alta velocidade, mas o texto já trazia situações mais próximas.

O humor buscava exorcizar o tabu:

"Falar de seguro é complicado viu, é um assunto de que ninguém gosta, mas não tem como evitar, porque você pode estar saindo da sua garagem apertada vai que... Ou você está andando na sua rua numa boa e vai que... Ou, sei lá, você chega em casa de viagem, abre a porta e vai que... Ou até mesmo dormindo, naquele soninho gostosinho, vai que... Agora, a verdade é que pode acontecer até num churrasco. Você está ali no fogo e... Por isso faça um seguro da Bradesco Seguros. Porque, afinal, vai que, né, você sabe... É melhor ter."

Comparado com o law, "vai que" aponta para o improvável, mas deixa uma margem para que algo (no caso, o sinistro) realmente ocorra: perfeito para vender seguro!


Sequência

Em outro momento, a campanha passou a mostrar que, na ficção, uma equipe de especialistas surge do nada para controlar situações extremas. Já na vida real, só se pode realmente contar com o time de especialistas da Bradesco. E víamos a equipe da "Missão Impossível" (com a trilha sonora do filme, helicóptero etc.) ou o Batman enfrentando o Coringa ("vai que o herói que você liga está ocupado combatendo o crime").

E finalmente, em fevereiro deste 2015, as chamadas de rádio dizem simplesmente:

"Vai que seu herói não pode ajudar".

E aí temos mais uma genialidade do apelo: o uso (permitido coloquialmente) do indicativo no lugar do subjuntivo ("possa"), induzindo o ouvinte a cair na realidade (indicativo) de que não há heróis disponíveis, de que sinistros realmente ocorrem e é melhor ter aquele seguro e nenhum outro mais.



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