CAPÍTULO
I
ESTRUTURAS
DE LINGUAGEM E FORMAS DE PENSAMENTO
"Neste Qur`an, expusemos aos
homens todos os
tipos de mathal... É um Qur`an árabe..."
(Alcorão 39,
027-028).
I.1 Língua e forma de
pensamento
Neste capítulo, indicaremos
os pontos de nosso referencial teórico
relativos às relações entre
estruturas de língua e formas de pensamento.
Sete características da língua/forma de
pensamento árabe que nos permitirão, em
capítulos seguintes, avaliar o destacado papel
desempenhado pelos provérbios na
tradição cultural
árabe.
Esse referencial teórico
procede, principalmente, de um extraordinário
artigo do filósofo alemão
contemporâneo Johannes Lohmann ([1]),
relacionando estruturas lingüísticas e
formas de pensamento.
O autor mostra a
relação entre a língua
árabe e a filosofia árabe
([2])
e a correspondente relação entre a
língua grega clássica e suas filosofia e
produções culturais ([3]).
Lohmann, mais preocupado com a
filosofia strictu senso, não fala
explicitamente em provérbios, mas, a partir de
seus sugestivos conceitos, poderemos mostrar como os amthal são a mais acabada
expressão da "forma de pensamento"
árabe.
Uma primeira
observação sobre as
relações entre língua e forma de
pensamento é a de que "o que nos interessa
não são as línguas em si, mas as
línguas enquanto pré-determinam uma
certa concepção de mundo para o falante,
ou como diz Heidegger, eine Erschlossenheit des
Daseins" ([4]).
Em outras palavras, o alcance do
pensamento condiciona-se pela linguagem. Não
só pelo maior ou menor número e
profundidade de conceitos e potencial expressivo dos
vocábulos, mas também (e principalmente)
pelas estruturas peculiares de cada língua ou
famílias de línguas.
Assim, cabe falar num sistema
língua/pensamento, que, no caso do grego,
é justamente denominado por Lohmann por logos e, no caso do árabe, por ma'na.
"O conceito de ma'na,
`intencionalidade' ([5]),
é tão característico da forma
árabe de pensamento, como o é a
noção específica do termo grego logos, em sua concepção original,
para a forma de pensamento do grego clássico.
E, além do mais, justamente por essas duas
noções, ou, por assim dizer, sob os
auspícios dessas duas noções,
é que estas duas formas de pensamento,
encarnadas, cada uma em uma língua determinada
- o grego clássico e o árabe
clássico - exprimiram-se como tais em uma
filosofia" ([6]).
I.2 O verbo ser e a frase
nominal
Assim, um primeiro fato
gramatical/mental que fundamenta o conceito
lohmanniano de língua/pensamento, dá-se
em torno dos peculiares usos do verbo ser. Ao
contrário do árabe, no centro
semântico do sistema grego, "encontra-se o verbo esti (ser), que, segundo Aristóteles,
está implicitamente contido em qualquer outro
verbo" ([7]).
O ocidental, hoje, desde o
início da aprendizagem formal da língua,
está acostumado a pensar que toda frase
é composta de nome e verbo. Quando,
porém, entra em contato com a gramática
árabe, surpreende-se com a presença
constante da frase nominal, isto é, com o que,
do ponto de vista ocidental, se considera frase
nominal.
Para o árabe - onde
simplesmente não existe o verbo ser como verbo
de ligação - é muito mais
freqüente e natural a frase nominal do que para o
ocidental que, nesses casos, pressupõe
implícito o verbo ser.
Essa função
copulativa do verbo ser é uma particularidade
das línguas indo-européias, a que
estamos tão habituados que nem reparamos que
ela é dispensável e, até mesmo,
inexiste em outras famílias
lingüísticas.
Nós mesmos prescindimos do
verbo ser em certos contextos ([8])
e, particularmente, em alguns enunciados proverbiais,
como:
Tal pai, tal
filho.
Casa de ferreiro, espeto de
pau.
Cada macaco em seu
galho
Chamemos a atenção,
desde já, para este fato de extrema
importância: não por acaso, é
precisamente no campo dos provérbios que o
ocidental aproxima-se da estrutura
lingüística (e da forma de pensamento...!)
árabe.
Como dissemos, a
tradição ocidental herdou a
consideração de que o verbo ser - que o
português e o espanhol desdobram em ser e estar
([9])
- está presente (ou pelo menos
implícito) em toda sentença e subjaz a
toda ação verbal ("Chove" = "É
(/está) chovendo").
Assim, os ocidentais são
inconscientemente induzidos a pensar na
presença do verbo ser (/estar) e, nos exemplos
acima, facilmente poderiam torná-lo
explícito: "Tal como é o pai, tal é o filho"; "Em casa de ferreiro, o
espeto é de pau", "Que cada macaco esteja em seu galho" ([10]).
Se o emprego da frase nominal para
o ocidental pretende expressar algum tipo de
ênfase peculiar ([11]),
já o árabe, ao empregar a frase nominal,
está se exprimindo de forma espontânea,
condizente com sua postura diante da vida, com seu
espírito essencialmente poético.
Daí, como dizíamos, a particular
afinidade da língua árabe com a
estrutura dos provérbios, como se pode ver nos
seguintes provérbios libaneses:
(#7) Cão do grande,
grande e cão do príncipe,
príncipe [FGHL,
1739].
(No orig.: Kalb al-kabyr kabyr
wa kalb al-amyr amyr. O sentido é claro: "O
cão que pertence ao homem grande deve - em
atenção a este - ser tratado com a mesma
deferência devida a seu dono e, do mesmo modo, o
cão do príncipe é, por
extensão, príncipe
também").
(#8) A cadeia (é; ou foi feita) para os homens; o
chorar (é; ou compete a), para as
mulheres [FRHA, 1345].
(#9) Opressão do gato e
não justiça do rato [FRHA,
1298].
(Prefiro, é mais
suportável (ou "se não houvesse outra
possibilidade de escolha...") a opressão
exercida pelo gato no poder do que a justiça do
rato. O sentido é claro: o mais decisivo
é a retidão moral do
poderoso...).
Para o sistema logos, a
pretensão de correspondência entre a
realidade em si mesma e o pensamento, é
possível precisamente pelo papel exercido pelo
verbo ser: presente, tanto na realidade, como (ao
menos, implicitamente) em qualquer juízo. E
assim, o pensamento pretende homo-logar o
real.
Encontramos uma
projeção desse sistema, não
só na filosofia grega, em que um
Parmênides chega a afirmar: Tò
gàr auto noein estin te kaì einai ("Na verdade, pensar e ser é, ao mesmo tempo, a
mesma coisa"), mas, também na Geometria,
ciência grega por excelência. A geometria
grega ([12])
é o modelo acabado do sistema grego, que
Lohmann considera uma "língua de visão",
em correspondência, tanto quanto
possível, bijetora com o real.
Esse "tanto quanto possível"
impõe seus limites: por exemplo, na geometria
grega, não encontraremos o zero (o
número zero não tem
correspondente-logos com o real) e é
conhecido o escândalo histórico produzido
pela descoberta da incomensurabilidade de grandezas (o
número irracional, para eles a-logos!,
entra em contradição com o
próprio sistema de pensamento grego). E, de um
modo positivo, Euclides afirma: o um é a
realidade!
Já o árabe é
diferente. Seu sistema língua/pensamento
não é logos, mas ma'na:
prevalece não a pretensão de a linguagem
acompanhar pari passu o ente, mas o sentido
mental (intentio, ma'na),
independentemente da
correspondência-logos com o real.
Daí que a ciência árabe, por
excelência, seja a álgebra (com zero e
números negativos). E o irracional, na
incomensurabilidade geométrica é aceito
com total naturalidade pelo árabe
([13]).
I.3 Associação
imediata
Se o sistema
língua/pensamento logos, centrado no
verbo ser, promove a busca de correspondência
exata entre pensamento e realidade ([14]),
o sistema árabe, ma'na, tende a um
pensamento (e a uma comunicação...) por
associação imediata, em que as
conexões lógicas não precisam ser
explicitadas ([15]).
Isto evidencia-se, por exemplo, numa peça
clássica da literatura árabe
pré-islâmica: a Khutbah ("Discurso") de Qus Ibn Sa'ida ([16]),
que apresentamos em tradução de Helmi M.
I. Nasr ([17]).
O DISCURSO de Qus
Ibn-Sa'ida
Ó gente! Ouvi e
meditai!
É certo que quem vive,
morre
E quem morre, finda
E o que tiver que ser,
será.
(Contemplai...) A noite
escura
O dia sereno
O céu, com suas
constelações!
E estrelas, que brilham
E mares, que se agitam
Montanhas assentadas
A terra, que se estende
Rios que correm
Não vedes que no céu
há notícias
E na terra, sinais?
Por que será que os que se
foram ([18])
não voltam?
Será que estão
satisfeitos e, por isso, lá ficaram?
Ou então, porque
ninguém cuidou de despertá-los,
permanecem adormecidos?
Ó tribo Iyad: onde
estão nossos pais, onde os
avós?
Onde o poder dos faraós?
([19])
Acaso sois mais ricos do que
eles?
Ou vossa vida, mais longa do que a
deles?
(E, no entanto) Foram esmagados
pelo peso dos anos
Rasgados ao meio pelo fluir do
tempo.
Neste ir-se das antigas
gerações, há para nós luz
interior
Quando vi ondas de morte chegando,
sem que saibamos de onde procedem
E vi meu povo ser por elas tragado,
tanto os pequenos como os grandes!
E vi que não volta o
passado, nem retorna quem se foi
Então me convenci de que
também eu irei para onde meu povo
está...
Khutbah
Aiuha al nas! Isma'u ua
'u!
Innahu man 'asha
mat
Ua man mata fat
Ua kullu ma hua atin
at
Lailun daj
Ua naharun saj
Ua sama`un dhatu
abraj
Ua nujumun tazhar
Ua biharun
tazkhar
Ua jibalun mursah
Ua ardun
mudhah
Ua anharun mujrah
Inna fi al sama`i
lakhabara
Ua inna fi al ârdi
la'íbara
Ma balu al nassi yadhabuna ua la
yarji'un?
Aradu fa aqamu? Am turiku
fa anamu?
Ia ma'shara Iyad! aina al aba`u
ua al ajdad?
Ua aina al fara'inatu al
shidad?
A lam yakunu akthara minkum
mala?
Ua atuala
ajala?
Tahanahum al dahr
bikalkalih!
Ua mazzaqahum
bitataulih
Fi Al dhahibina alaualina min al
quruni lana basa`ir
Lamma ra`aitu mau aridan
lilmauti laissa laha masadir
Ua ra`aitu qaumi nahuaha
yassa'a alasagiru ua alakabir
La iarj'u al madi ilaiya
ua la min al baqina gabir
Aiqântu anni la
mahalata haythu sara al qaumu sa`ir.
Antecipando análises que
serão feitas posteriormente, chamamos, desde
já, a atenção do leitor para a
forma proverbial das sentenças de Qus Ibn
Sa'ida: "Quem vive, morre", "Quem morre, finda"
etc.
Naturalmente, os diversos fatos
lingüísticos
(lingüístico-mentais) que, neste
capítulo, estamos enumerando um tanto
compartimentadamente são, na realidade,
interligados. Assim, a associação
imediata é o complemento natural da
ausência do verbo ser como verbo de
ligação. Isto torna-se claro, - entre
tantas outras instâncias - precisamente em
diversos enunciados de provérbios, como, por
exemplo ([20]):
(#10) Al-jar qabla
ad-dar
(É mais importante o vizinho
do que a moradia - literalmente: "O vizinho antes da
moradia").
(#11) Ar-rafyq qabla
at-taryq
(É mais importante o
companheiro do que a viagem - literalmente: "O
companheiro antes da viagem").
Curiosamente o melhor exemplo
ocidental desse aspecto da forma de pensamento
árabe, marcada pela ausência do verbo
ser, é encontrado na poesia que mais
insistentemente dele faz uso: Águas de
Março, de Tom Jobim ([21]).
Grande e grandiosa, inquietante,
"Águas de Março" soa aos nossos ouvidos,
sempre de novo, como diz sua letra, como "um
mistério profundo".
Parte desse mistério reside,
talvez, no fato de a poesia de Águas de
Março nos arrancar de nossos padrões
usuais de pensamento ocidental e nos conduzir
às formas de pensamento do Oriente, "lugar" do
mistério, por excelência.
Heidegger - ao final de seu Qu'est-ce que la philosophie? ([22])
- diz que não só a linguagem está
a serviço do pensamento, mas também
ocorre o contrário. É bem o caso de Águas de Março, em que, tal como
a linguagem-pensamento árabe, em vez dos longos
e complicados discursos lógico-gramaticalmente
articulados ocidentais ([23]),
encontramos um rápido e cortante suceder de
flashes em frases nominais provenientes de uma
imaginação fulgurante com a
irresistível força da imagem
concreta.
Assim, uma cena, digamos, como a de
abater um pássaro, seria, no limite
típico, descrita por um ocidental nestes
termos: "Estava um pássaro a voar no
céu, quando eu o vi. Ora, ao vê-lo,
interessei-me por ele e, portanto, dado que dispunha
de uma atiradeira, muni-me de uma pedra, mirei-o,
disparei a atiradeira a fim de atingi-lo; de fato
atingi-o e, portanto, ele caiu, o que me possibilitou
apanhá-lo com a mão".
Já o árabe tende a
apresentar essa mesma cena do modo como o faz Tom
Jobim em "Águas de Março": "Passarinho
na mão, pedra de atiradeira". Os enlaces
lógicos ficam subentendidos por detrás
da sucessão de imagens.
E o mesmo ocorre, por exemplo, com
este outro verso da mesma canção: "carro
enguiçado, lama, lama" (em ocidental: "O carro
enguiçou, devido à avaria provocada por
excesso de lama", esse excesso é expresso
semiticamente pela repetição: "lama,
lama") etc.
Naturalmente, a presença
constante do verbo ser na letra de "Águas de
Março" não invalida a semelhança
com o caráter oriental do pensamento (onde se
empregam frases nominais e não o "é"),
pois trata-se da forma fraca, descartável,
desse verbo.
Aliás, a
orientalização ([24])
chega ao extremo quando no final da
canção, interpretada por Tom e Elis
(Elis com riso mal contido), o verbo ser é
suprimido e se diz simplesmente:
Pau,
pedra, fim
caminho
Resto, toco,
pouco sozinho
Caco,
vidro, vida,
sol
Noite,
morte, laço,
anzol
I.4 Flexão de temas /
flexão de raízes
Um outro importante aspecto do
sistema língua/pensamento ([25])
é assim expresso por Lohmann:
"O árabe, como o
semítico em geral, de um lado, e o grego, de
outro, estabelecem relações com o mundo:
um, principalmente pelo ouvido e o outro, pelo olho.
Tal fato levou o falante semítico a uma
preponderância da religião, enquanto o
grego tornou-se o inventor da teoria. Daí
decorre (ou procede...?) uma diferença
análoga das respectivas línguas, quanto
a seu tipo de expressão. Cada um desses dois
tipos caracteriza-se por um procedimento gramatical
específico: flexão de raízes no
semítico e flexão de temas no
indo-europeu antigo" ([26]).
Este fato é de
extraordinário relevo para a compreensão
da visão de mundo oriental com sua
"indeterminação" e flexibilidade
semântica, que se manifestam primeiramente em
fenômenos de sintaxe. Lohmann chama a
atenção para a significativa
dimensão semântica do fato de a
flexão (de desinência) grega/latina
deixar inalterada a raiz da palavra (correspondente
à ousía, à substantia). No exemplo tradicional das
gramáticas elementares de latim, o radical ros de rosa permanece fixo, pois uma rosa
é uma rosa; qualquer outro fator (seu
relacionamento com o mundo exterior, com o pensamento
humano ou com qualidades que são nela):
da cor da rosa (genitivo) ao mosquito nela pousado
(ablativo), é refletido pelas desinências
rosam, rosarum, rosae etc.
O árabe, por sua vez,
não tem radicais fixos: o radical
trilítere, digamos S-L-M, é intra-flexionado: SaLaM; iSLaM; SaLyM; muSLiM
etc. ([27]).
I.5 Pensamento
confundente
Para compreendermos a complexidade
do potencial semântico dessas raízes
semíticas e para poder estabelecer
relações com os amthal,
recolhemos aqui algumas considerações
([28])
sobre o conceito - tomado aos filósofos
espanhóis Julián Marías e Ortega
y Gasset - de "pensamento confundente".
Naturalmente, esse conceito
não traz, em si, nenhuma carga pejorativa;
antes trata-se de uma legítima e fecunda forma
de pensamento, como explica Julían
Marías:
"Uma das mais interessantes
descobertas de Ortega y Gasset é a do pensamento confundente (grifo nosso):
confundir é uma função tão
necessária quanto distinguir, porque permite
descobrir as conexões entre realidades que, por
outro lado, é necessário distinguir
(...)
Muitas vezes me tenho referido
à vaguíssima e estupenda palavra de
nossa língua `bicho' - palavra exasperante para
um zoólogo, creio que estão
classificadas umas oitenta mil espécies de
coleópteros -, que permite designar
inúmeras espécies animais, prescindindo
de suas diferenças. Se estou lendo ou
escrevendo e entra um inseto pela janela - como no
poema de Dámaso Alonso -, não poderia
tomar facilmente uma decisão de conduta, se
tivesse que comportar-me com ele de acordo com sua
espécie.
Mas, o que quero é
unicamente tirá-lo daqui, e tenho que
tratá-lo como `bicho' sem estabelecer outros
questionamentos" ([29]).
Precisamente essa
atenção ao confundente no sistema
língua-pensamento-realidade é uma rica
dimensão da forma de pensamento das
línguas semíticas. Como se sabe, nas
línguas semíticas (como o árabe
ou o hebraico), a mesma palavra ou, mais amplamente, o
mesmo radical tri-consonantal ([30]), confunde (de um ponto de vista ocidental) em
si, diversos significados, oferecendo-nos a
oportunidade de apreensão de
relações de significado até
então insuspeitadas.
Pense-se (é um primeiro
exemplo) no fato de que o árabe - pela
"confusão" de sentidos no radical S-D-Q
- é convidado (ou mesmo compelido) a pensar
como indissociáveis, conceitos tão
distintos - para o ocidental - como: amizade e
confiança.
É o caso também do
radical S-L-M da palavra salam (ou, em
hebraico, Sh-L-M de shalom), que o ocidental
costuma traduzir por "paz".
Em torno desta raiz, S-L-M,
confundem-se na linguagem - e no pensamento...
([31])
-, entre muitos outros, os significados de:
integridade ([32])
no sentido físico ([33])
e moral (SaLyM é o íntegro);
saúde (e fórmula universal de
saudação), normalidade (o plural
SáLiM na gramática é o plural
regular); salvação ("sair-se são
e salvo", mas também salvação no
sentido religioso); submissão,
aceitação (de boa ou má vontade),
daí iSLaM e muSLiM (muçulmano);
acolhimento; conclusão de um assunto; paz
etc.
Exemplifiquemos também com
um contexto familiar, o da Bíblia. Nela
encontramos o radical S-L-M "confundindo" diversos
conceitos, para o pensamento ocidental totalmente
distintos. Assim, de Salomão (SaLuMun,
SuLaiMan), Deus diz a seu pai Davi (este, sim, um
homem de guerras): "Este teu filho será um
homem de paz, pois Salomão é o seu nome"
(I Crn 22,9). E Deus, apesar da infidelidade do rei,
mantém a integridade, a união do reino de SaLuMun e diz:
"Todavia, não tirarei da mão dele, parte
alguma do reino..." (I Reis 11, 34). S-L-M, concluir,
acabar. No livro de Esdras, encontramos Sesabassar
encarregado da construção do templo "que
ainda não está concluído"
(Esd 5, 16). S-L-M, entregar completamente, colocar ao
inteiro dispor: "Deposita diante de Deus, em
Jerusalém, os utensílios que te foram entregues, para o serviço do templo do
teu Deus" (Esd 7, 19). Etc. etc.
Mas são os provérbios
(que trazem em sua breve formulação uma
unidade completa de sentido que não requer
nenhum outro contexto textual), que melhor permitem
percorrer - rapidamente e com plenitude de sentido - a
gama semântica de uma raiz árabe.
Adquirem, assim, extraordinária
importância para a aprendizagem da língua
e compreensão da mentalidade. Para o caso do
exemplo que estamos analisando, os diversos
significados confundidos na raiz S-L-M (em
itálico, nos provérbios), destacamos os
seguintes amthal:
(#12) A vasilha não
pode ir sempre ao fundo do poço e sair sempre inteira [FGHL, 1184].
(#13) Ó Senhor,
concede-nos sempre o convívio dos poderosos,
mas mantém-nos incólumes... [FGHL, 1758].
(#14) Se a vinha estivesse protegida de seus próprios guardas,
produziria toneladas [FGHL,
2124].
(#15) Sem defeito,
garantido pelo ferreiro! [FGHL,
1776].
(Esta frase feita faz
referência ao costume oriental de consultar o
ferreiro antes de comprar um cavalo).
(#16) O que começa
por definição de
condições, acaba em paz
[FGHL, 2500].
(Em um negócio, num acordo,
num jogo, não fixar claramente as
cláusulas é expor-se a rixas e
desavenças).
(#17) Aquele que se
glorifica a si mesmo te enviou saudações [FGHL,
326].
(Frase feita para referir-se a uma
pessoa vaidosa).
(#18) Mil batidas na porta
antes do salam (antes de atender e
cumprimentar) [FGHL, 1531].
(Diz-se do avaro que tem medo do
dever de oferecer hospitalidade).
(#19) Desde o bater
à porta até à despedida [FGHL,
1572].
(Frase feita significando:
"absolutamente tudo", "de fio a pavio").
(#20) Nem sequer um Ôi! [FRHA,
1913].
(Reclamando da falta de
educação de alguém que sequer
cumprimentou: Salam, sem mais, é o
cumprimento mínimo!).
(#21) A segurança de um homem está em
conter sua língua [FRHA,
1914].
(#22) Quem te confia seu
dinheiro, confia-te sua própria
pessoa [FGHL, 2519].
(#23) O vento, ele deixa por
conta da tempestade e dorme tranqüilo [FGHL, 2363].
(Diz-se de alguém que
não sabe guardar segredo e
espalha-o).
(#24) Aperte-lhe a
mão, mas confira os dedos depois
[FGHL, 19].
(Prevenindo contra uma pessoa
desonesta).
(#25) Tendo saúde , está tudo bem! [FRHA, 1915].
(#26) Escapou do urso
para cair no fosso [FRHA,
1920].
("Saiu da panela para cair na
frigideira").
E pode-se dar o caso de
provérbios, que combinem diversos sentidos
confundidos na mesma raiz:
(#27) Abandona-te em
Deus e encontrarás a salvação [FRHA,
1917].
Como dizíamos na Introdução, as
características de uma forma de pensamento
(oriental/ocidental) indicam não exclusivismos,
mas ênfases, afinidades e tendências mais
tipicamente acentuadas em cada caso.
Assim, encontramos em um dos
principais representantes contemporâneos da
tradição filosófica ocidental,
Josef Pieper, exemplos de uma rica possibilidade de
diálogo entre Ocidente e Oriente.
No filosofar de Pieper,
dão-se importantes passagens, marcadas pela
forma de pensamento árabe ([34]).
Pieper mostra, por exemplo, que
não há, radicalmente, duas felicidades,
mas uma só: a Felicidade definitiva, a
bem-aventurança final, que é já
prefigurada e dada em participação nas
felicidades desta vida presente. Pieper cita a
sentença de Tomás: "Assim como o bem
criado é certa semelhança e
participação do Bem Incriado, assim
também a consecução de qualquer
bem criado é também certa
semelhança e participação da
felicidade definitiva" ([35]).
Tal tese verifica-se na linguagem e Pieper,
agudamente, aponta em seu tratado sobre a felicidade
que, quando as diversas línguas eliminam a
distinção entre uma felicidade sublime e
as felicidades banais, estão, no fundo, fazendo
uma acertada confusão que espelha a realidade!
([36]).
Um outro exemplo, ainda mais
sugestivo para o nosso caso: quem quer que se
pergunte, filosoficamente, "O que, em si e afinal,
é o amor?" deve atentar não só
para as infinitas distinções de que as
línguas grega, latina e neo-latinas
dispõem, mas, sobretudo, para as
riquíssimas possibilidades confundentes da
língua alemã que, não
dispõe senão de um único e
confundente substantivo: Liebe.
"Assim usamos Liebe para
expressar a preferência por uma determinada
qualidade de vinho, como também para designar o
solícito amor por uma pessoa que está
passando por dificuldades; ou ainda para a
atração mútua entre homem e
mulher; ou a dedicação do
coração a Deus. Para tudo isto, dispomos
de um único substantivo: Liebe. (...)
Esta manifesta, ou simplesmente aparente, pobreza do
vocabulário alemão oferece-nos uma
oportunidade especial: a de enfrentar o desafio,
imposto pela própria linguagem, de não
perder de vista aquilo que há de comum, de
coincidente entre todas as formas de amor"
([37]).
Por esse caminho, pode Pieper chegar à
caracterização do amor como
aprovação e a sua genial
formulação: Amar é dizer "Que bom
que você exista!".
I.6
Metáteses
O ocidental já fica surpreso
com a "imprecisão" e extrema amplitude do campo
semântico em torno dos radicais tri-consonantais
árabes, que, evidentemente, para o falante
árabe, são normais ([38]).
Em geral, o radical árabe
é definido pelas três consoantes, alma da
palavra árabe, e as vogais só fazem a
articulação periférica do
sentido. Um exemplo, calcado em português
([39]),
ajudar-nos-á a compreender a clave
árabe: é como se, para nós, fosse
imediatamente evidente não haver hiato
semântico entre palavras nossas como: carta, certo, curto e corta (pois a atenção estaria
principalmente voltada para o "radical", C-R-T); ou, absoluto, obsoleto e basalto...
A questão complica-se ao
infinito, para o ocidental, quando ele descobre que
ainda há mais: não só o radical
trilítere é difuso, mas não
é incomum que, por metátese, se lhe
associem (ainda mais difusamente) outros campos
semânticos.
Freqüentemente, a
metátese, isto é, a mudança de
ordem das três consoantes, faz surgir uma nova
raiz de significado relacionado com a original, como,
em português, seria o caso de terno/tenro.
Entre nós, a metátese
é rara ou casual; no Oriente, é
freqüente ([40])
e, muitas vezes, dotada de real (e encantadora)
conexão de sentido. É o que se pode ver
nos seguintes exemplos árabes:
S F R (viajar)
F R S (cavalo) ([41])
K B R (fazer
crescer)
B R K (abençoar) ([42])
B K R (primogênito)
Q M R (lua)
R Q M (numerar, regrar)
X R B (beber,
brindar)
B X R (alegrar-se, anunciar boa nova)
B H R (mar)
R H B (amplo, espaçoso, ser
bem-vindo)
T F L (criança pequena)
L T F (delicado, gracioso)
A lista pode ser alongada mais e
mais e é, dizíamos, infinitamente
sugestiva para a descoberta de relações
reais, como também em outros exemplos,
como:
' M L (fazer)
' L M (saber)
H S N (bondade,
doçura)
S H N (tratar bem, com bondade)
X K R
(agradecer)
K R X (entranhas)
F R Q
(separar)
Q F R (deserto) FaQyR (pobre!)
Q B L (encarar, acolher,
beijar)
Q L B (coração)
' S B (amarrar)
S ' B (ser difícil) ([43])
Comum às línguas
semitas, a metátese aparece como um dos tantos
recursos sem registro correspondente nas
línguas ocidentais, o que, evidentemente,
empobrece a tradução: perdem-se
saborosos jogos de linguagem, próprios do
Oriente. Assim, por exemplo, como faz notar Strus
([44]),
encontram-se metáteses nos relatos
bíblicos vetero-testamentários, tal como
quando a primogenitura (BKR) é, na
Bíblia, associada à
bênção (BRK) e ao engrandecimento
(KBR), ou quando a forma sonora de SaRaY, mulher de
Abraão, remete, por metátese, a
herança, herdeiro (YRSh).
Por vezes, os provérbios
jogam com metáteses, como é o caso
de:
(#28) 'alim bila 'amil
mithl al-gaym bila matar [FGHL,
2695].
("Sábio que não age
(que não `produz', que não ensina)
é como nuvem sem chuva").
A mesma metátese aparece no
Alcorão (11,46): Allah adverte contra o ato - 'ml - incorreto: não se deve pedir algo
de que não se tem conhecimento - 'lm.
I.7 A imagem
concreta
Paul Auvray, em seu sugestivo
estudo sobre as línguas semíticas,
analisa mais uma característica importante para
nosso trabalho ([45]):
um acentuado voltar-se para o concreto.
Naturalmente, trata-se de uma
questão de ênfase, pois -
insistamos - este voltar-se para o concreto não
é apanágio árabe ou semita:
é - como indicaremos nos parágrafos
seguintes - fenômeno humano, em alguma
medida presente em todas as
línguas.
Auvray liga a conhecida
observação de que "os antigos semitas
não eram muito dados a pensamento abstrato" a
peculiaridades da língua ([46]).
Após lembrar que "são raras em hebraico
as palavras verdadeiramente abstratas", exemplifica
com a língua bíblica (mas até os
exemplos concretos que selecionamos são
perfeitamente válidos para o
árabe):
"O vocábulo derek (em
árabe, taríq - nota nossa)
mereceria um longo estudo. Sua primeira
acepção é `via', `caminho', mas
veio a significar também `atividade', `maneira
de agir' ou `maneira de pensar' (cfr. Ex 18,29 e ss.;
23,17 ss.). A imagem encontra-se com
freqüência nos Salmos e no Novo Testamento
(onde o grego ódos adquire o mesmo
significado).
Mas, em numerosas passagens dos
escritos mais antigos, tem-se a impressão de
que a imagem concebia-se como tal (...) Outro tanto
poderia indicar-se a respeito da palavra rúah (em árabe, ruh - nota nossa), que se traduz com
freqüência, e muito precisamente, por
`espírito'. Não obstante sua
acepção prístina é a de
`sopro', `vento'. Em muitos textos o autor parece
evocar os dois significados, o que complica o trabalho
do tradutor: Deus insufla no homem `um sopro de vida'
ou `um espírito de vida' em Gn 2,7
?".
Um sugestivo exemplo é o mathal seguinte, em que procuramos manter o
sabor original árabe de frase
nominal:
(#29) Pai dele, alho;
mãe, cebola. Como pode ele cheirar bem? [FRHA, 58].
(Note-se que, na
indefectível e infinita imersão no
concreto imaginativo do pensamento oriental, o
comportamento é, antes de mais nada, associado
ao aroma . O árabe, ainda hoje, diante do filho
que lembra os pais diz: Min rihat umuhu - ou abuhu -, do aroma de sua mãe (ou
pai) e, há dois mil anos, o apóstolo
Paulo - 2Cor 2,15 - escrevia que os cristãos
devem ser "bonus Christi odor". Assim, o
provérbio refere-se, de modo concreto, ao papel
da família em relação ao
comportamento dos filhos, enquanto o ocidental fala em
abstrato: "herança de berço",
"má-criação",
"má-educação" etc...).
Este gosto pelo concreto
potenciará os provérbios árabes,
pois a imagem (evocada pelo mathal), mais
próxima da realidade imediata, sempre tem mais
força de persuasão do que a
articulação de mediatos conceitos
abstratos.
Como veremos, ao analisar a
antropologia de Tomás de Aquino, em maior ou
menor grau (de realidade e evidência), todas as
línguas trazem em seu léxico
inúmeras associações
metafóricas ([47]),
mas, no caso do árabe, este fato é mais
acentuado. Para o árabe, a extensão de
significado é, por assim dizer, "levada mais a
sério" do que no Ocidente....
Um exemplo ajudar-nos-á a
compreender. É natural que a palavra "olho" (e
seus correspondentes nas diversas línguas...),
preste-se, por extensão, a múltiplas
associações e composições
de significados.
Mas, em árabe, olho
('ayn) significa realmente: sol
([48]).
Já no Ocidente, mesmo numa
época - a Idade Média - em
que o pensamento europeu era profundamente
alegórico ([49]),
e em que vemos um Alcuíno
definir ([50]),
poeticamente, a lua como olho (oculus noctis),
em nenhum momento a palavra olho, na linguagem comum,
passa a significar, também, lua.
É especialmente ilustrativo
o caso de um provérbio que, para o ocidental
é expresso em extremos de
abstração, enquanto o árabe, para
o mesmo conteúdo, vale-se da forma radicalmente
oposta: concreta, figurativa. O ocidental
diz:
Quem o feio ama, bonito lhe
parece.
(Mais abstrato, impossível:
"Quem", "o feio", "bonito"...).
Já a
formulação árabe
é:
(#30) Al-qurd b'ayn
ummuhu gazal [FGHL,
2867].
"O macaco, aos olhos de sua
mãe, (é uma) gazela".
Sempre o concreto! Para expressar,
por exemplo, que algo é dificultoso e
infindável ("Isso - essa conferência,
essa visita importuna, esse discurso - não
acaba nunca!") evoca-se o mês do
jejum:
(#31) Interminável
como o Ramadã [FRHA,
232].
O apego do oriental ao concreto
obriga a manifestar materialmente as atitudes: a
consideração deixa de ser abstrata
quando se traduz de modo visível (o que
constrange a minoria introvertida...): numa homenagem,
deve-se elogiar/presentear ostensivamente; num
velório, é necessário chorar
convulsivamente; numa recepção,
comer:
(#32) É no comer que
se mostra a afeição (pelo
anfitrião). [FRHA,
300].
I.8 A ligação
psicológico-gramatical com o
passado
Para finalizar o quadro de
componentes que estamos considerando neste
capítulo, destacamos, neste tópico, um
particular uso do passado na gramática
árabe, assim expresso por Aida Hanania
([51]):
"Outra característica, presente tanto no falar
comum como nos provérbios, decorre da peculiar
noção árabe de tempo. Como dizia
Jamil Almansur Haddad: `O árabe vê o
passado como um bloco homogêneo. E vê o
futuro como um bloco homogêneo. (...) (O
Ocidente faz) o contrário: faz essa
atomização, essa
dissecção, essa separação
temporal, que inventou toda uma máquina de
dividir o tempo (clépsidra, relógios e
assim por diante, até chegar aos mecanismos
atuais que medem centésimos de segundo). O
contrário daquele complexo de infinito de
árabes, de orientais, de todo o Oriente'
([52]).
É como se nessa visão monolítica
do tempo, o presente e o futuro não tivessem
autonomia em face do passado, este, sim, determinante
e determinador. Essa preponderância do passado
repercute na gramática".
A repercussão na
gramática a que a autora se refere é um
fato surpreendente, que, assim expressamos alhures: "A
gramática árabe vale-se do passado
até mesmo para expressar o futuro, que aparece,
assim, como mera resultante do passado. Como diz o
Eclesiastes (1,9): `O que foi é o que
será; o que se fez é o que se
tornará a fazer: nada há de novo sob o
sol!'. Se é fenômeno normal, em tantas
línguas, o emprego do presente para expressar o
futuro (`Vou jogar bola amanhã'), ou mesmo para
o passado (`Em todo Natal, viajo'), o uso do passado
para falar do futuro é aparentemente descabido.
E, no entanto, é assim que a gramática
árabe procede. O futuro é, para o
árabe, até em termos gramaticais,
determinado pelo passado e por ele expresso em
sentenças proverbiais.
Tal fato torna-se
compreensível quando nos lembramos de alguns
poucos exemplos de uso semelhante em nossa
língua, especialmente em linguagem
publicitária: como a do jornal que, anunciando
as vantagens de seus anúncios classificados,
dizia: `anunciou, vendeu' (`quem anunciar,
venderá)' ([53])".
Assim, provérbios
árabes que traduzimos valendo-nos do presente
são, na verdade, expressos em passado.
Retomando, por exemplo, as sentenças de Qus Ibn
Sa'ida que se traduzem por: "Quem vive, morre", "Quem
morre, finda" etc., observe-se que dizem, na verdade,
literalmente:
(#33) "Quem viveu,
morreu",
(#34) "Quem morreu,
findou".
("Man 'asha mat ua man mata
fat") etc.
Essas sete características
do sistema língua/pensamento árabe, que
indicamos neste capítulo, ajudar-nos-ão
a compreender o alcance e o significado dos amthal para a educação oriental.
Recordemos ([54])
que, para a milenar sabedoria oriental, os amthal são a perfeita
tradução em termos pedagógicos e
de comunicação do sistema
língua/pensamento semita, ajustando-se
perfeitamente a suas características: o
voltar-se para a imagem concreta e o recurso à
experiência, ao passado etc. Para o ocidental -
sempre tipicamente falando -, uma discussão se
encerra, quando se chega a um argumento lógico
abstrato; para o oriental, pelo contrário,
prevalece a imagem.
Se um Aristóteles fosse
indagado sobre "o próximo", ele responderia:
"A diz-se próximo de B, se, e
somente se, ocorrerem as seguintes
condições...". Quando, porém,
indagam a Cristo ([55])
pelo próximo, Ele responde com um mathal, a parábola do bom samaritano:
"Um homem descia de Jerusalém a
Jericó...".
I.9 Nota sobre a
influência árabe nos antigos
provérbios portugueses ([56])
A influência árabe
(com sua multi-secular presença na
Península) nos provérbios portugueses,
desde a Idade Média, é visível em
muitos planos. Em primeiro lugar, no do próprio
conteúdo, como é o caso - entre tantos
outros - dos seguintes:
Quem compra o que nam pode,
vende o que nam deve [DELIC, 49].
Pelejam os ladroens, descobrense
os furtos [DELIC, 382].
Casa o filho quando quiseres e a
filha quando puderes [DELIC, cap.
"Cazamento"].
Esses provérbios, como
mostra Helmi Nasr em sua antologia, reproduzem antigos amthal literários árabes,
respectivamente:
(#35) Quem compra o que
não precisa, acaba vendendo o que
precisa... [NASR, 12].
(#36) Quando dois ladrões
divergem, aparece a coisa roubada [NASR,
10].
(#37) Case seu filho quando
quiser; case sua filha quando puder... [NASR,
11].
Mas, para além da mera
tradução de diversos enunciados
procedentes do patrimônio sapiencial oriental,
há também o aspecto formal (não
percamos de vista o fato central de que o sistema
língua/pensamento árabe encontra sua
adequada tradução, precisamente no
provérbio).
Assim, o provérbio
português imita, por vezes, a
associação imediata de imagens do
árabe, tal como em:
Amizade de genro, sol de
inverno ([57])
[DELIC, 22].
Casa de pay, vinha de
avô [DELIC,
428].
Essa expressão, tão
típica dos provérbios, por frase nominal
- uma opção para o Ocidente - é
uma imposição nas línguas
semíticas.
Vimos, há pouco, a
ligação mental/gramatical do
árabe com o passado. É natural que essa
ligação manifeste-se primordialmente nos
provérbios (que, por natureza, remetem à
experiência, ao passado). O próprio
futuro é, para o árabe, determinado pelo
passado. E, assim, pode ser expresso em
sentenças proverbiais. Não é por
acaso, portanto, que encontramos em
Delicado:
Queres ver o por vir, olha
o passado [DELIC, 023].
Pello fio tirarás o
novello e pello passado o que está por vir [DELIC, 024].
E o português acaba imitando
formulações árabes em que o
futuro (incluído no supra-temporal, fixado pela
experiência) é expresso em tempo
passado:
Quem sofreo,
vençeo [DELIC, 25].
(Sentença que o ocidental
expressaria, normalmente, em presente ou futuro: "Quem
sofre, vence" ou "Quem sofrer,
vencerá").
Também na Espanha medieval,
encontramos influências - de conteúdo e
forma - árabes, como mostram os seguintes
exemplos ([58]):
El rey rey, reina; el rey
non rey, non reina, mas es
reinado.
(A formulação desta
máxima está calcada em procedimento
sintático muito usual na língua
árabe. Assim, por exemplo, um pensamento
árabe, depois de afirmar que pobre não
é aquele que mendiga pelas ruas,
contrapõe afirmando que pobre de verdade,
realmente pobre (literalmente: "Pobre pobre - Al-faqyr, al-faqyr...) é aquele que
não dispõe de amigos etc.
([59])).
Lo caro es rehez([60]),
lo rehez es caro.
(Al-galy rakhis wa al-rakhis
galy).
[1].
"Santo Tomás e os Árabes - Estruturas
lingüísticas e formas de pensamento"
Revista de Estudos Árabes, Centro de
Estudos Árabes/FFLCHUSP, São Paulo, Ano
III, n. 5-6, pp. 33-51. Tit. orig.: "Saint Thomas et
les Arabes (Structures linguistiques et formes de
pensée)",
Revue Philosophique de
Louvain, t. 74, fév. 1976, pp. 30-44.
Trad.: Ana Lúcia Carvalho Fujikura e Helena
Meidani; revisão técnica: Luiz Jean
Lauand.
[2].
E, no mesmo sentido, alude à mesma
conexão entre língua e outras
produções culturais.
[3].
Como, por exemplo, a propensão grega para a
theoria e, no caso da matemática, para a
Geometria; enquanto o árabe estaria mais
voltado para a religião e, em
matemática, para a Álgebra, etc.
[4].
Art. cit. p. 38. Mesmo reconhecendo uma certa
radicalização na posição
de Lohmann, não resta dúvida de que
há - senão uma
determinação - pelo menos um forte
condicionamento do pensamento pelas estruturas da
língua. Talvez fosse melhor falar em
interação dialética, na medida em
que também o pensamento influencia a
formação da língua.
[5].
No sentido técnico-filosófico de
intentio, apresentado por Lohmann.
[6].
Art. cit. p. 35-36. E prossegue: "Que a filosofia
árabe seja, em seu aspecto externo (isto
é, quanto a seu conteúdo material),
procedente da recepção de uma filosofia
estrangeira - o aristotelismo grego do final da
Antigüidade-, isto não altera em nada, o
fato de que esta filosofia árabe seja
formalmente a mais perfeita expressão do
gênio da língua árabe - enquanto a
filosofia grega, não é, em
substância, senão uma expressão,
ou antes, uma explicitação da
idéia fundamental do pensamento e da
língua gregas, a saber:
logos".
[7].
Art. cit. p. 35. Para a discussão deste tema,
recolheremos neste tópico - com as naturais
alterações de formulação -
idéias que expressei nos capítulos:
"Oriente e Ocidente Língua e Mentalidade" e "A
magia da metátese na língua
árabe" in
Oriente e Ocidente
Língua...
[8].
Em contextos muito determinados, como: certas
manchetes de jornal: "Empresa tal em concordata",
"Mais dois porta-aviões americanos no Golfo",
"Dobradinha brasileira em Silverstone" ou linguagem
telegráfica: "Estoque hoje mil unidades",
"Melhores votos novo casal" etc.
[9].
Na maioria das línguas ocidentais, o que o
português indica por
estar é
expresso pelo próprio verbo
ser.
Não é fácil, por exemplo,
traduzir, digamos, para o inglês ou para o
francês - sem perda da força da
formulação sucinta -, a famosa
declaração do ex-ministro, Prof. Eduardo
Portela, poucos dias antes de deixar o cargo: "Eu
não sou ministro; estou ministro!".
[10].
"Empresa tal
está em concordata", "Mais
dois porta-aviões americanos
estão no Golfo", "O resultado da corrida
foi: dobradinha brasileira em Silverstone", "O
estoque hoje é de mil unidades", "Meus votos
para o novo casal
são os melhores".
Além das frases nominais na linha das
apontadas, há, na língua árabe,
outras que surgem pelo particular emprego - inusitado
para nós - do particípio presente, como
por exemplo: "Eu `sainte'" (em vez do nosso "Eu estou
saindo") cfr. LAUAND e HANANIA
Oriente e
Ocidente Língua..., p. 12.
[11].
Como indica Aida R. Hanania, em nosso citado
capítulo "Oriente e Ocidente Língua e
Mentalidade" : "São ilustrativas, a
propósito, as sínteses que faz
Graciliano Ramos em
Vidas Secas, onde o
caráter lacônico e áspero da
linguagem (frases rápidas, sem verbos de
ligação e, muitas vezes, de
ação) espelha o cáustico Nordeste
e o perfil psicológico de sua gente".
[12].
Já a geometria contemporânea, ligada
à moderna concepção de sistemas
axiomáticos, aproximar-se-ia de uma outra forma
de pensamento (derivada do sistema
logos, mas
já independente) - também
discutida por Lohmann no artigo citado -,
paradigmatizado pelo inglês falado nos dias de
hoje.
[13].
Um documentado estudo (com textos
bilíngües árabe/inglês) sobre
o espírito da matemática árabe em
confronto com a matemática grega (e,
particularmente, sobre a recepção
árabe do conceito matemático grego de
logos) é a tese de PLOOIJ, E. B.
Al-Djajjâni - Commentary on Ratio in
Euclid's conception of Ratio as criticized by arabian
commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van
Hengel, 1950. Veja-se também o capítulo
"Umar Al-Khayyam" de BERGGREN, J. L.
Episodes
in the Mathematics of Medieval Islam, New York,
Springer, 1986.
[14].
Busca que ocorre, por excelência, no caso do
grego clássico.
[15].
Atente-se, por exemplo, à tão empregada
função conectiva causal do
ua ("e") árabe, como no caso da
Khutbah que apresentamos a
seguir.
[16].
De propósito, tomamos não uma poesia,
mas um discurso argumentativo (se bem que as cinco
linhas finais, no original, aproximem-se - pelo ritmo
e pela rima - de poesia). Para o tema da
associação de imagens nesta
Khutbah, veja-se também LAUAND e
HANANIA "Tom Jobim e a poesia árabe" in
Oriente e Ocidente Língua...
[17].
NASR, Helmi "A contingência na
Khutbah de Qus Ibn Sa'ida" in LAUAND, L.
J. (org.)
Oriente e Ocidente: Filosofia e
Arte...
[19].
Séculos depois, os faraós ainda eram o
símbolo do maior poder humano.
[20].
Devo estes exemplos ao Prof. Dr. Helmi M. I.
Nasr.
[21].
Nos próximos seis parágrafos, retomo
considerações feitas (em co-autoria) em
"Tom Jobim e a poesia árabe" in
Oriente e
Ocidente: Língua..., pp. 9 e ss.
[22].
In
Os Pensadores vol. XLV (Sartre-Heidegger).
São Paulo, Abril, 1973.
[23].
Pense-se não só nos indicadores
lógicos usuais ("se..., então",
"portanto", "pois" etc. etc.), mas também, por
exemplo, no complexo jogo de marcação do
discurso pelas partículas gregas.
[24].
Orientalização que se realiza
também pela evocação de
semitismos, como nos versos "É a chuva
chovendo..." "É o vento ventando...".
[25].
Sempre de novo, trata-se de um fato
gramatical/mental.
[27].
Também este parágrafo procede do
já citado capítulo "Oriente e Ocidente
Língua e Mentalidade".
[28].
Do já citado capítulo "Um aspecto
árabe no filosofar de Pieper - Linguagem e
`pensamento confundente' na metodologia do filosofar
de Josef Pieper" in LAUAND, L. J. (org.)
Oriente e
Ocidente: Filosofia e Arte...
[29].
MARÍAS, J.
La felicidad humana,
Madrid, Alianza Editorial, 1988, pp.16-17.
[30].
Como se sabe, o radical tri-lítere é que
é a alma da palavra semita. Cfr.
Oriente e
Ocidente: Língua... p. 19 e ss.
[31].
Confundem-se na linguagem, no pensamento e... na
própria realidade.
[32].
Nesse sentido primário de
Salam/Shalom,
como união, integração,
remoção de barreiras, entende-se melhor
a sentença - um dos tantos semitismos no grego
neo-testamentário - do apóstolo Paulo:
"Cristo, nossa
paz, que de dois fez um,
derrubando o muro que os separava" (Ef 2, 14). Se para
um ocidental, esta sentença é
enigmática, para um semita ela é clara:
nossa
paz é o mesmo que "nosso
integrador".
[33].
Assim se compreende que
sullum seja a escada, a
que faz a união.
[34].
Os próximos três parágrafos,
são tomados do citado estudo "Um aspecto
árabe..." in LAUAND, L. J. (org)
Oriente e
Ocidente: Filosofia e Arte..., pp. 8 e ss.
[35].
De Malo, 5, 1 ad 5. Todo este parágrafo
refere-se à análise feita no Cap. I de
Glück und Kontemplation, München,
Kösel, 1957.
[36].
"Gerade hierin aber, das der
eine Name
`Glück' so sehr Verschiedenes bennent (...)
gerade in dieser immer wieder einmal verwirrenden
Gleichnamigkeit bleibt ein fundamentaler Sachverhalt
unvergessen und gewahrbar. Ich wage zu behaupten, dass
er die Bauform der ganzen Schöpfung spiegle".
Glück und Kontemplation, p.30.
[37].
PIEPER, J. "O que é o amor?",
Revista da
Faculdade de Educação USP, vol. 18,
No. 2, p. 253-254. No orig.:
Glauben, Hoffen,
Lieben, Freiburg, IBK, 1981, p. 24.
[38].
Neste tópico, retomo
considerações feitas em LAUAND, L. J.
Raízes do Pensamento Medieval, Amazonian
Book-Sellers, 1993, pp. 54 a 56.
[39].
Que não deixa, evidentemente, de ter suas
limitações...
[40].
O que, para usar outra metátese casual
brasileira, desorienta/desnorteia o ocidental
[41].
É evidente a relação entre viagem
e cavalo. Esses radicais geraram duas palavras
conhecidas nossas: certo tipo de excursão,
SaFaRi, e certa patente antiga do exército, al-
FeReS.
[42].
Já Q L L, ser pouco, é também
desprezar e, no hebraico bíblico,
amaldiçoar!
[43].
Estes exemplos encontram-se em MELONI, Gerardo
Saggi di Filologia semitica, Roma, Casa
Editrice Italiana, 1913.
[44].
STRUS, Andrzej,
Nomen-omen, Roma, Biblical
Institute Press, 1978.
[45].
AUVRAY, Paul et al.
Las lenguas sagradas.
Trad. del orig. francés -
Les langues
Sacrées - por Juan A. G. Larraya. Andorra,
Casal i Vall, 1959, pp. 36 e ss.
[46].
Mais do que as diversas incidências gramaticais
dessa atitude (que o autor explora em seu
capítulo sobre a estilística semita),
interessa-nos aqui a própria atitude em si
mesma.
[47].
O Prof. Alfredo Alves escreveu um sugestivo estudo
sobre um caso de extensão no Ocidente, o da
palavra
board na língua inglesa: "A
board, a long narrow piece of sawn timber less thick
(under 2 1/2 inches) than a plank came to mean, among
many other things, a body of men sitting in council to
deliberate on important matters, the Board of Trade,
the Electricity Board etc. How did this metamorphosis
come about?..." ALVES "Board" in LAUAND, L. J.
Filosofia e Linguagem Comum, Curitiba, PUC-PR,
1989, p. 23 e ss.
[48].
Além de "fonte", "a elite", "riquezas" etc.
Devo esta nota ao Prof. Dr. Helmi M. I. Nasr.
[49].
O pensamento teológico medieval, sobretudo na
Primeira Idade Média, tende à alegoria
em geral e a uma leitura profundamente
alegórica da Bíblia (cfr. p. ex. LAUAND,
L. J.
Educação, Teatro e
Matemática Medievais, S. Paulo, Editora
Perspectiva - Edusp, 1986 e LAUAND, L. J.
O
Xadrez na Idade Média, São Paulo,
Perspectiva-Edusp, 1988). Tal fato é, em sua
origem e em seu significado, oriental,
helenístico: estabelecido, desde fins do
século III, pela "Escola de Alexandria" (que
abriga autores tão importantes como Clemente ou
Orígenes), e, posteriormente, pelos escritos -
que tanta influência tiveram no pensamento
medieval - de Pseudo-Dionísio Areopagita, etc.
(cfr. p. ex., GILSON, E.
La Filosofia en la Edad
Media (Caps. I.3 e I.5), 2a. ed., Madrid, Gredos,
1972; PIEPER, J.
Scholastik (Cap. III) 2.
Aufl., München, DTV, 1978; LAUAND, L. J.
O Significado Místico dos
Números, Curitiba-S.Paulo, Edit. PUC-PR-
GRD, 1992.
[50].
Pippini regalis et nobilissimi juvenis disputatio
cum Albino scholastico, PL 101, 975-980 in LAUAND,
L. J. (org.)
Clássicos: pequenos textos do
Oriente e do Ocidente, São Paulo, EDIX -
DLO-FFLCHUSP, 1995, p. 13.
[51].
"Prefácio" a LAUAND, L. J.
Provérbios
Árabes, S. Paulo, DLO-FFLCHUSP,
1994.
[52].
"Interpretações das Mil e uma
Noites"
Revista de Estudos Árabes No. 2, jul-dez 1993, p.59.
[53].
HANANIA, A. R. - LAUAND, L. J.
Oriente e Ocidente:
Língua..., pp. 27-28.
[54].
Retomo aqui um parágrafo de meu
Provérbios Árabes, S. Paulo,
DLO-FFLCHUSP, 1994
[55].
A língua materna de Cristo, o aramaico,
pertence - tal como o hebraico - à mesma
família semita e é, portanto, semelhante
ao árabe; certamente traduz forma de pensamento
semelhante.
[56].
Retomo aqui tema que desenvolvi em LAUAND, L. J.
(org.)
Oriente & Ocidente:
Educação Moral e Sátira dos
Vícios, S. Paulo, EDIX/ DLO-FFLCHUSP,
1995.
[57].
Este provérbio é, na verdade,
originariamente espanhol, como já se nota pela
rima na retradução:
yerno/invierno.
[58].
Extraídos do estudo de Ana Lúcia
Carvalho Fujikura "Provérbios Literários
e
Enxiemplos da Espanha medieval" in LAUAND, L.
J. (org.)
Oriente e Ocidente: Idade
Média..., p. 28.
[59].
AUN, Chafik Nicolau
Coletânea de
Sabedorias, São Paulo, Littera, 1988, No.
763.